Sempre tropecei no verbo suportar. Talvez porque consciente ou inconscientemente ele remeta para tudo o que nos é insuportável.

E é tão mais fácil, tão mais imediato e sedutor colar um rótulo de ‘insuportável’ a alguém ou alguma coisa. Somos muito reativos e também somos muito julgadores. Por outras palavras, somos humanos. A inclinação para catalogar é universal, parece que ninguém escapa nem está imune. Aliás, entre os vários sinónimos desta tendência natural de todo o ser humano, há uns verdadeiramente eloquentes: condenar e sentenciar. Passamos a vida a fazer isto aos outros, sempre na esperança vã de que os outros não o façam em relação a nós.

Hoje em dia, e porque nos é cada vez mais difícil resistir à tentação serpentina de dar cabo da reputação de alguém que pensa ou age de maneira diferente, mas também porque nos custa admitir que somos terrivelmente julgadores, damos por nós a aportuguesar expressões inglesas e a usar verbos como ‘tagar’. Isto, claro, para podermos colar uma ‘tag’ aqui e outra ali de consciência mais leve.

Julgar e gerar preconceitos é quase tão natural como respirar. Penso se há veneno que trazemos em nós, sempre pronto a servir, é o julgamentozinho a propósito de tudo e nada. O dito ou a graça, o escárnio e o maldizer, a ironia e a depreciação revelam sempre uma presunção de superioridade sobre alguém que nos irrita, que mexe connosco e se torna insuportável aos nossos olhos.

Voltando ao verbo suportar e para fechar este introito, tenho a certeza que é daqui que vem a minha dificuldade em conjugá-lo. Porque à partida soa bastante insuportável.

E, no entanto, suportar é uma força que puxa para cima e nada tem a ver com a tendência para deitar abaixo. Se formos à etimologia da palavra, percebemos que se trata de dar suporte. Vem do latim e significa carregar, levar, transportar. Ou seja, apoiar. Também casa bem com amparar, acolher e validar. Não consta no dicionário, mas atrevo-me a dizer que suportar também poderia ser sinónimo de não julgar e antónimo de condenar.

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Se considerarmos que a ideia-chave do verbo suportar é ‘colocar-se abaixo de uma carga para lhe dar apoio’, tomamos consciência de que é isso que nos é pedido na lendária e irritante pregação de São Paulo, também ele um grande julgador e um tremendo sentenciador antes de se ter convertido. Jesus Cristo, o homem que ele próprio perseguia, sobre quem tinha os piores preconceitos e contra quem falava e argumentava, deu um testemunho transformador deste verbo pois jamais o ouviram julgar e condenar alguém.

“Suportai-vos uns aos outros” afinal é um abaixamento pelo outro. Pelo melhor para o outro. Uma atitude cristã, bem sei, mas tenho visto tantos descrentes e tantos céticos adotarem esta atitude, que não é possível dizermos que é um exclusivo de crentes. É, isso sim, sinónimo de humanidade e de força resgatadora. E está ao alcance de todos, igualmente pronta a servir.

Sei de diretores e gestores, líderes e administradores, chefes e coordenadores que são verdadeiros mestres na arte de suportar.  De dar suporte, quero dizer. Também sei de muitos pares e colaboradores capazes de salvar os outros dando-lhes suporte moral, profissional, técnico e logístico. Há de tudo em todo o lado, sempre. Também há os que intoxicam, que envenenam e poluem o ar nas empresas e nas organizações, mas já escrevi tanto sobre esses que hoje o meu foco incide sobre os que fazem tudo o que podem para dar apoio, para dar suporte, para dar a coragem de seguir em frente.

E isto leva-me às famílias, que são porventura as estruturas mais complexas e poderosas que conhecemos. Muito mais exigentes e interpeladoras que as empresas profissionalmente mais exigentes. E com uma capacidade de nos influenciar que dificilmente será suplantada pelo ‘influencer’ mais idolatrado do mundo.

Em tempo de férias e apenas para alguns, não para todos, felizmente, o verbo suportar pode ficar um pouco mais difícil de conjugar. Penso particularmente nas famílias desavindas, nos pais que não se entendem com os filhos, nos filhos que não têm paciência para os pais, nas mulheres e nos maridos que não validam os sentimentos um do outro nem valorizam as diferenças entre si, enfim em todos aqueles que pela força dos laços e das circunstâncias são obrigados a passar alguns dias juntos, na mesma casa, sem a desculpa das aulas, do trabalho, das reuniões e dos compromissos profissionais para se ausentarem e respirarem fora da sua zona de desconforto.

Felizmente, insisto, a esmagadora maioria das pessoas não se revê no que escrevo nesta crónica. Que bom. Infelizmente há alguns para quem as férias se tornaram uma fonte de nervos e de mais desentendimentos. Uns conseguem diluir a tensão ao terceiro dia (retomando a terminologia bíblica), mas outros não conseguem chegar a suportar a presença dos que por alguma razão se tornaram insuportáveis aos seus olhos.

E é aqui que quero chegar. Semestre após semestre académico ouço pais perplexos com as notas dos filhos, sejam universitários ou pré-universitários. Muitos mostram-se inquietos com a sua performance escolar e ficam inseguros quanto às opções de futuro neste mundo adverso e altamente competitivo. Não sabem como gerir as expectativas que têm em relação a eles. Percebo-os e tento apoiá-los, mas sei que só é possível ajudar aqueles que percebem a eficácia de dar suporte aos filhos. Pode ser através de um amor firme, de quem os compreende, mas não tem medo de lhes impor regras e limites, mas tem que passar por suportar.

Recebo no gabinete muitíssimos mais estudantes do que pais. Vão no auge das suas fases de discernimento sobre o futuro, que lhes parece demasiado incerto, e também a eles tento passar a ideia do suporte mútuo. Nunca senti tanta necessidade de sublinhar que o essencial é dar suporte e ter paciência. Muita paciência uns com os outros, mas também connosco próprios, pois o verbo só se conjuga bem com doses extra de paciência. Assim como quem toma um suplemento alimentar ou coisa parecida.

Por tudo isto e porque muitos estão finalmente despachados de aulas e exames, apetece dizer e insistir: suportem-se uns aos outros nestas férias! Acredito que se o fizerem, a rentrée — seja ela académica, profissional ou familiar — vai ser muito mais fácil. Nas empresas os resultados medem-se e quantificam-se, mas nas famílias não. Se isso fosse possível veríamos os resultados e comprovaríamos a eficácia da conjugação do verbo suportar.