Que as pessoas boas são chatas, parece não haver dúvidas. Talvez por isso, geralmente fazer a coisa má pede mais talento de nós do que fazer a boa (expus sucintamente a tese no texto “De pecadores para panhonhas”). Pensem como os grandes crimes, por exemplo, nos dão histórias muito mais emocionantes do que as filantropias mais comoventes. Por alguma razão nunca se venderam histórias de boas acções como se vendem “crime stories”. Não escolhemos séries na Netflix acerca de como aquela pessoa viveu uma vida inteira fazendo o bem, não interessa a quem. Já o contrário…
Quando forçamos gostar de gente boa tornamo-nos tão chatos como essa gente boa já é. É por isso que vivemos irremediavelmente entediados por um mundo que desfila heróis atrás de heróis, causas atrás de causas, numa fila indiana de solidariedade que nos comprime como um cordão de segurança. Quando ser bom se torna a razão de ser, a maldade parece a única forma de liberdade a sério. Foi por essa brecha que a serpente explorou a imaginação dos moradores do Éden: que tal ser livre como uma forma de conviver com algo além do bem? As pessoas duvidam que o Diabo exista mas continuam a papar a sua tentação mais básica. Quanto mais solucionados nos sentimos, menos praticamos as melhores modalidades da suspeita.
E esse torna-se um dos nossos maiores problemas: só esperamos problemas dos problemas. Nem sempre foi assim. Em épocas menos apressadas as pessoas também esperam problemas das soluções e é essa atenção que as torna mais reflectidas. Esse é um dos valores mais preciosos e mais difíceis de promover, por exemplo, entre os meus filhos e a minha Igreja. Temos de passar uma vida inteira a lembrar que qualquer tolo sabe que um problema provavelmente gerará outros mais, mas só um sábio está preparado para também os esperar de uma solução.
Creio que este é um dos desfasamentos actuais na relação do mundo com o Cristianismo, em particular. O Cristianismo (e mais especificamente o Protestante, que é o meu) sempre se distinguiu de todas as outras fés religiosas pelo seu desconforto diante do bem. Como assim? Onde todas as outras religiões esperavam grandes coisas das coisas boas, o Cristianismo desconfiava e preparava-se para até das coisas aparentemente boas virem más. Vindo do monoteísmo judaico, o Cristianismo sabia que, por exemplo, adorar o Deus certo (o único, diante de uma multidão de muitos) era tão importante como adorar o Deus certo da maneira certa. O pavor que os judeus e os protestantes (e até os muçulmanos!) têm à produção de imagens e esculturas representando Deus ilustra este princípio em acção: não é apenas o conteúdo do que se adora, mas é também a maneira como se o faz (“media is the message”, já nos ensinava o católico Macluhan). É bom, portanto, suspeitar da solução mais óbvia de adorar Deus.
Adorar as coisas certas da maneira errada não é assim tão diferente de adorar as coisas erradas ainda que com uma intenção meio certa. O rigor do Cristianismo sempre foi alto. Um mundo que julga que o conhece, distrai-se da razão de ser das velhas exigências da fé. A ironia está também no facto de que, descristianizando-se a sociedade (seja lá isso o que for), ela perde familiaridade com esses padrões árduos. E nós podemos saber que vivemos numa sociedade que não percebe nada de Cristianismo precisamente por ela deixar de suspeitar de soluções. O facto de hoje a nossa imaginação moral estar espalmada, dividindo o mundo entre lados certos e lados errados da história, traduz na perfeição o analfabetismo de não compreender que alguns dos maiores problemas nascem do que a determinado momento nos pareceu ser a melhor solução.
Lutero sabia que o melhor que podia acontecer a uma pessoa era ela saber-se justa e pecadora, alcançada pela graça de Jesus. Isso é substancialmente diferente de dividir o mundo entre os justos e os pecadores, como hoje tende a acontecer. O verdadeiro santo não é o bom; é o que se sabe o primeiro dos maus. Se alguma verdadeira bondade existir, ela está na certeza de que o pior que já vimos, foi visto cá dentro, nas entranhas de quem somos. Enquanto não suspeitamos das soluções que nos julgamos ser para os outros, além de bonzinhos somos uma chatice—provavelmente a pior forma de maldade.