Uma das coisas mais chatas no facto de as pessoas não lerem a Bíblia é que ela não é reconhecida como o “manual de maus costumes” que José Saramago sabia que era. A ignorância popular presume as Escrituras como, pelo menos, vagamente inspiradoras e, assim, mais uma razão ganha para só lá ir quando, por algum motivo realmente muito metafísico, se queira deleitar em sublimidades. Como na maior parte do tempo a nossa vida não se coaduna com putativas sublimidades, acabamos completamente desfamiliarizados com a Bíblia. Esse é um dos truques quase infalíveis do Diabo: convencer as pessoas de que a Bíblia é uma biblioteca de gente boa para gente boa.

Uma das vantagens de uma criança educada a ler a Bíblia é que nada fora dela a vai escandalizar. Crimes conjugais? Check logo nos primeiros capítulos do Génesis. Irmãos que limpam o sebo a irmãos? Idem aspas aspas. Poligamias e incestos? A mesma coisa ainda no primeiro livro da Bíblia. Racismo e limpezas étnicas? Siga. Esquartejamento de vítimas de violação? É ler o livro dos Juízes. A lista podia continuar mas, para a preservação dos nossos estômagos, estes exemplos servem para o efeito. A Bíblia não foi escrita para nos fazer sentir bem mas o contrário. Certamente que depois, e lida com o espírito certo, nos providenciará paz e até perdão. Mas antes de todos esses céus, pisamos-lhe os fossos mais medonhos. Quem lê o livro sagrado não usa material de alpinismo, para atingir os píncaros da existência, mas galochas para que a lama não nos chegue rapidamente às peúgas.

Jesus era muito sensível ao catálogo de malfeitorias que o Velho Testamento lhe providenciava. Mais ainda: quem lê os evangelhos sabe que o Senhor, mais do que a bondade lorpa dos religiosos, meditava na malícia dos pecadores. Se há característica da pedagogia de Cristo que, depois de quatro décadas, me continua a surpreender é a da imitação dos maus. Como assim? Partilho uma mão cheia de exemplos. No Sermão do Monte, Cristo toma os fariseus como referência a ser ultrapassada e não negada (Mateus 5:20), e faz pedagogia a partir de pais maus para que confiemos no melhor de todos que é Deus (Mateus 7:11). No evangelho de Lucas, Jesus usa quem despacha um amigo sem sentido de oportunidade (Lucas 11:5-8) e, talvez num dos textos mais dado a equívocos, elogia o mordomo infiel para explicar que, para sermos competentes com as coisas santas, convém sermos espertos com as desgraçadas (Lucas 16:1-13). Simples como as pombas, e prudentes como as serpentes, resumirá para termos a noção de que somos enviados para o meio de lobos, e não para o meio de anjos (Mateus 10:16).

O que está em causa nesta pedagogia aparentemente escandalosa não tem nada a ver com relativismo moral. Naturalmente, Deus quer os seus a portarem-se como deve ser. Mas num mundo caído, não nos portamos como deve ser na ignorância dessa mesma queda constante. Pelo contrário, Jesus quer que reconheçamos que geralmente para fazermos as piores coisas nos guiam padrões elevados. E, reconhecendo-os, sabermos que Deus nos pede mais e melhor. Grande parte da santidade que não temos vem do empenho que não admitimos na indecência. Um dos privilégios que tenho como pastor é sentar-me na primeira fila no conhecimento das patifarias irrepreensivelmente executadas pelos pecadores que confiam em mim em confissão. Aprendo sempre muito com os pecados dos outros. Quando os ouço, a minha obrigação é orar: “Senhor, dá-me mais vontade para te obedecer do que a que estes usaram para te abandonar”.

Tristemente, o que dedicamos ao arrependimento não se compara com o que dedicámos ao pecado. Tendo a simpatizar mais com os pecadores quando estão na fase do pecado do que com os pecadores quando estão na fase do arrependimento precisamente por isto: os segundos constantemente perdem a ambição. Quando se endemoninhavam faziam trinta por uma linha; agora que os acompanha o Espírito Santo são uma cambada de panhonhas. Não aprendem nada com Jesus, o Mestre, quando propõe que não ignoremos a maldade mas que a apreciemos ao ponto de a ultrapassar. Imaginem o potencial de alguém mais aceso para a santidade futura do que para a safadeza passada. Como sabia Flannery O’Connor, o céu é dos violentos.

À medida que nos descristianizamos, vai-se perdendo o critério de estimar uma bandidagem. Na educação dos nossos filhos esta é das tarefas mais complicadas. Tenho a ideia de que o esforço dos pais era no passado encaminhar os seus em ter prazer na coisa certa. Os nossos tempos são delicadíssimos porque damos por nós com adolescentes assustadoramente prontos para se portarem bem. Os ídolos da juventude são chibos a favor da responsabilidade, o que nos força a ter de incutir alguma impiedade aos nossos pequenos. Pior do que dar-se ao cancelamento de outros, é que muitos nas novas gerações nem sequer entendem que possa haver algum prazer em correr o risco de ser cancelado. A tragédia não é o Diabo ter o Ocidente nas mãos; é ele passar a vida a esfregá-las por já não precisar de o tentar.

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