É verdade: tudo indica que, como disse Passos Coelho, Maria Luís Albuquerque “não infringiu a lei” ao aceitar o convite para ser administradora não executiva da financeira britânica Arrow Global.
É verdade, mas lamento: não é isso que me interessa. O argumento de Pedro Passos Coelho pode interpretar bem a lei, mas erra em dois pontos que me parecem cruciais.
O primeiro, é que, ao contrário do que em tempos defendeu um outro ex-ministro das Finanças, Pina Moura, a ética não é a lei. A ética é muito mais exigente que a lei e assim deve continuar a ser. No dia em que quisermos prever na lei todos dilemas éticos estaremos a criar uma sociedade em que o livre arbítrio deixará de fazer sentido. Ninguém o deve desejar.
O segundo, é que nunca se deve esquecer a ideia, várias vezes sublinhada por Salazar, de que “em política, o que parece é”. Por isso o comportamento da ex-ministra das Finanças pode ser legal, nem discuto; admito mesmo que não viole nenhum princípio ético, se se comprovar a pertinência do esclarecimento entretanto divulgado pela empresa; mas tudo isto não chega para iludir o essencial, e esse essencial é que “parece muito mal” uma ex-ministra aceitar, menos de três meses passados sobre a sua saída do governo, um lugar numa empresa financeira que gere dívidas. Isso mesmo: dívidas.
Eu sei que há situações muito mais nebulosas, para não dizer muito mais duvidosas, naquele mesmo Parlamento. Suspeito até que a relativa moderação com que o PS reagiu à notícia deriva de conhecer os seus telhados de vidro. Mais: também sei que bem mais complicado do que estar na administração de uma empresa é dividir o seu tempo entre o Parlamento e os escritórios de advogados por onde passam os grandes negócios do país (há suficientes dados no livro de Gustavo Sampaio Os Facilitadores para termos uma ideia do que se passa nesses corredores). Ao menos o caso de Maria Luís é mais transparente.
Ainda sei mais coisas. Sei, por exemplo, que os nossos políticos e governantes (ao contrário de muitos dos administradores de empresas públicas) são relativamente mal pagos. Ao olhos de muitos portugueses ganham muito, porque em Portugal a maior parte dos salários são muito baixos, mas isso não impede que ganhem pouco quando pensamos nas responsabilidades que têm. Este é um dos tabus do nossos sistema político, e um dos motivos pelo qual é muitas vezes melhor ser ex-ministro do que continuar a ocupar funções políticas.
Podia continuar por aqui adiante, e muito do que escreveria seria visto como atenuantes capazes de ajudar a perceber a opção de Maria Luís Albuquerque. Por isso mesmo não sigo esse caminho: a ex-ministra das Finanças não só fez mal, como se auto-condenou à irrelevância como deputada eleita pelos portugueses. Eu, que não compreendi porque se manteve na última fila da sua bancada durante a importante discussão do Orçamento, suspeito que agora não vai sair de lá por muito tempo. O que significa que não será apenas Maria Luís a ser penalizada pelo seu passo errado – serão também o seu partido e os eleitores que representa e nela confiaram.
É injusto e excessivo? Porventura. Mas a política é cruel. Pior: a política é um campo minado especialmente perigoso nos dias que correm.
E assim chegamos ao que realmente se inquieta: a opção de Maria Luís facilita a vida a todos os que, na política e no espaço público, vestem a pele de justiceiros e exploram a menor oportunidade para lançar campanhas populistas. E não estou a falar dos Marinhos e Pintos ou dos Paulos Morais desta vida, que esses são principiantes: estou a falar dos campeões da demagogia fácil e preconceituosa, isto é, do Bloco de Esquerda.
Este foi um brinde que as Catarinas e as Mortáguas não podiam deixar de abocanhar. Com insinuações sobre factos inexistentes? Isso é-lhes indiferente, pois apenas exploram a suspeita (feita certeza no pelourinho das redes sociais) de que políticos e banqueiros estão todos feitos uns com os outros. Com chicana política? A oportunidade é óbvia, pois já estava à vista de todos que a comissão de inquérito ao Banif vai ser um longo comício político, bem diferente do que foi a comissão do caso BES.
Os tempos que vivemos são difíceis para os políticos responsáveis e moderados, pois a crise abriu espaço aos políticos de protesto, mesmo quando estes se mascaram de políticos preocupados com a governação. Pior ainda: os sucessivos escândalos (e os casos de gestão ruinosa) no sector financeiro aconselham a que se mantenham distâncias, sob pena de qualquer proximidade ser explorada por todos os que, na verdade, preferiram que não houvesse nem bancos, nem políticos com opiniões diferentes das suas.
Nestes tempos difíceis ainda é mais verdadeira outra velha máxima: à mulher de César não basta ser séria, tem de parecer séria. É por isso que não discuto a seriedade de Maria Luís, pois nada me leva a duvidar da sua rectidão ou que de algum modo tenha tenha beneficiado os seus novos patrões – o que condeno é não ter percebido o peso que hoje cai sobre os ombros dos políticos.
Caso ainda tenham dúvidas de que assim é, olhem aqui para o lado para Espanha, vejam a arrogância (e o sucesso) do Podemos e tenham medo. É que essa arrogância cresceu muito à conta de os eleitores terem perdido o respeito pelos políticos – e Maria Luís Albuquerque, mesmo podendo ter agido no quadro da lei, mesmo podendo não ter qualquer conflito ético ao aceitar o cargo que aceitou, não se deu ao respeito. Pelo contrário: deu o flanco a todos os que andam de casa em casa em busca de novas vítimas para os seus “autos de fé”.
São estes os tempos que vivemos, tempos perigosos. Daí que, como César nas escadarias do Senado, só me ocorra lamentar: “Também tu, Maris Luís?”
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