Há, por todo o lado, muita gente irritada com o confinamento. E não, não são necessariamente pessoas que acham o vírus uma invenção, ou o confinamento inútil. São gente que foi efectiva e talvez irreparavelmente prejudicada na sua profissão, nos seus empreendimentos, na sua educação ou na sua saúde pelo facto de os governos, aqui e por quase toda a parte, terem deixado a epidemia agravar-se ao ponto de o confinamento se ter tornado o único meio de prevenir o colapso dos serviços de saúde públicos.
Era inevitável? Não sei se era. Provavelmente, se os governos tivessem levado a sério a epidemia logo no princípio de 2020; ou se os serviços públicos estivessem preparados para este género de catástrofes; ou se as autoridades, no seu conjunto, tivessem sido mais consistentes na informação e nas decisões — talvez tudo pudesse ter sido diferente. Disseram-nos que, perante as incertezas do mundo, podíamos confiar nos Estados e nos serviços públicos. Enganaram-nos ou enganaram-se. Não, não podemos confiar: os Estados não foram bons centros de decisão, e os serviços públicos de saúde não estiveram à altura do seu primeiro grande desafio. Por tudo isto, muita gente pagou e está a pagar duramente: os que morreram, os que ficaram sem saúde, os que não tiveram a educação que lhes convinha, e, claro, os que perderam rendimentos, empregos e empresas. Estes estão agora dependentes de auxílios a que não é fácil perceber quem tem direito, nem quando vão chegar, ou se vão remediar alguma coisa. Sim, têm todo o direito de se mostrar impacientes. E quem felizmente foi menos atingido e está mais confortável tem o dever de compreender algumas das suas atitudes, e não simplesmente de exigir conformidade e respeitinho. Aliás, todos temos razões para não estar tranquilos.
Estamos a passar por algo que não é fácil de definir.
Imaginemos alguém, num futuro distante. Conhece toda a história do século XX, nomeadamente as duas grandes mundiais que tiveram a Europa como centro. Mas não sabe absolutamente nada sobre as primeiras duas décadas do século XXI. A esse nosso descendente, seriam então dadas duas informações sobre estes anos de que ele desconhece tudo: o nível das dívidas públicas em relação ao PIB, e o excesso de mortalidade. Só estas duas informações, e mais nada. Ser-lhe-ia então pedido que, a partir destas estatísticas e da história que conhece do século XX, tentasse adivinhar o que acontecera no princípio do século XXI.
Tentemos reconstituir o seu raciocínio. Em primeiro lugar, iria provavelmente comparar o nível de dívida pública nestes anos do século XXI com os níveis de dívida pública a seguir às duas grandes guerras mundiais. Concluiria, certamente, que no princípio do século XXI os Estados ocidentais teriam sido sujeitos a um tremendo esforço militar – o tipo de esforço que no século XX explicou os maiores abusos do crédito público pelos governos. A seguir, iria naturalmente interpretar a mortalidade em excesso como as baixas desse conflito, corroborando portanto a hipótese: o século XXI começara com mais uma grande guerra, que fizera uns milhões de mortos e deixara os Estados ocidentais tremendamente endividados, como no fim de cada uma das duas guerras mundiais do século XX.
O nosso descendente ignorante estaria errado, mas o seu raciocínio faz sentido, e talvez seja uma forma de compreendermos o que temos vivido nos últimos tempos. Se alguma vez tivermos de descrever o que foram os últimos anos no Ocidente, poderíamos talvez dizer: foi como passar por uma guerra sem haver guerra. Tal como numa guerra, os Estados acumularam dívidas enormes e muita gente morreu que, em circunstâncias normais, não teria morrido. Também como numa guerra, os indivíduos e as famílias viram-se, durante os confinamentos, separados e deslocados, à espera que tudo acabasse, mas sem saber o que viria depois. Ainda como em guerra, os governos adquiriram um enorme poder sobre a vida de cada um, impondo recolheres obrigatórios e fechando serviços, e agora, como no fim das guerras, parecem tentados pela oportunidade de usar esse novo poder para remodelar as sociedades.
Só que, de facto, não houve guerra. A dívida foi a maneira de os Estados ocidentais lidarem, desde o fim do século XX, com as crises financeiras, económicas e agora sanitárias. A mortalidade em excesso de 2020 e de 2021 resultou da completa impreparação de governos e de serviços de saúde para lidarem com a epidemia. Não podia haver demonstração mais completa dos limites dos Estados e dos seus modelos sociais no Ocidente. Falharam naquilo que solenemente prometeram às sociedades: não evitaram uma catástrofe como a epidemia, nem, conseguiram manter o crescimento económico estável que é, aliás, o pressuposto de muitos dos compromissos que assumiram, como os representados pela Segurança Social.
As organizações internacionais não se portaram melhor. A OMS esperou até 30 de Janeiro de 2020 para declarar a pandemia. A UE, ao concentrar a compra e a distribuição das vacinas, deu uma lição em como, ao contrário do que ensina o velho provérbio, a união faz por vezes a fraqueza. A preparação de vacinas em menos de um ano foi um feito notável. Mas na Europa, nem todos estão a tirar partido dessa proeza. O Reino Unido está a vacinar-se, os Estados membros da UE não estão ou estão mal. Para muitos britânicos, até agora desconfiados, o Brexit deve parecer finalmente justificado. A UE, porém, não parece ter sido feita para reconhecer erros. A fim de disfarçar o seu falhanço, inventou uma campanha de suspeitas e de alarmes contra uma firma farmacêutica britânica. Agora, pretende punir alfandegariamente o Reino Unido por lhe ter passado à frente. O suposto campeão do comércio livre está prestes a reciclar-se como campeão do proteccionismo vingativo.
No entanto, são estes Estados e estas organizações internacionais que, ainda no meio das incertezas da epidemia, das hesitações do confinamento e das demoras da vacinação, se apresentam a prometer-nos um futuro de segurança. Como? Através daquela que terá sido a grande descoberta destas primeiras décadas do século XXI: a de que Estados como os EUA ou como os membros da zona Euro podem fabricar dinheiro e endividar-se indefinidamente, sem receio de bancarrota ou de inflação. Em 2007, ainda havia medo da inflação, o que levou a Reserva Federal americana a precipitar a crise do subprime. Em 2010, ainda se receavam os mercados de capitais, que atormentaram os Estados deficitários e endividados do sul da Europa durante um par de anos. Agora, os mercados parecem subjugados, e a inflação deixou de ser tomada em conta. Os juros continuam baixos e o dinheiro mantém o seu valor. Na Europa, a disciplina orçamental parece ser hoje simplesmente determinada pelo valor dos défices que os governos do norte estão dispostos a consentir aos governos do sul. Para ultrapassar a recessão provocada pelos confinamentos, a ordem é, portanto, para os Estados se endividarem e os Bancos Centrais imprimirem notas como se estivéssemos no meio de uma guerra. É aí que estamos, de facto.
As perspectivas americanas e europeias para o pós-epidemia não estão apenas condicionadas pelo recurso aos expedientes financeiros e monetários que, já antes da epidemia, se tinham tornado a solução ocidental para compensar um crescimento económico abaixo das expectativas e dos compromissos. Os planos de recuperação e de resiliência, que puseram toda a gente a falar em milhões, milhares de milhões e milhões de milhões, apontam para um certo tipo de sociedade: uma sociedade onde os cidadãos estarão cada vez mais dependentes do Estado, e o Estado, por sua vez, cada vez mais dependente de dinheiro barato para suscitar simulacros de prosperidade em economias ricas, mas que deixaram de crescer.
Há aqui dois motivos de preocupação. O primeiro é que as dívidas são sempre pagas — por impostos, inflação ou bancarrota, nesta ou em outra geração: sair de aflições pela porta da dívida nunca se faz gratuitamente. O segundo motivo tem a ver com o facto de a autonomia económica dos indivíduos e das famílias perante o Estado ser a mais efectiva fundação da liberdade política numa sociedade. Só cidadãos verdadeiramente independentes são capazes de constituir um público exigente e um eleitorado indomesticável. Na sua falta, nenhuns arranjos constitucionais só por si impedirão uma facção monopolizadora e corrupta de clientelizar os eleitores necessários para se manter no poder e perverter as instituições. Onde a maioria dos indivíduos depende do poder político, o poder político pode quase tudo, e a liberdade está à mercê dos detentores desse poder. Uma sociedade reduzida a funcionários públicos, pensionistas e subsidiados é, agora como sempre, meio caminho para a servidão. Se, a esse respeito, alguma coisa os confinamentos fizeram, ao destruir empregos e negócios, foi tornar essa sociedade mais próxima.
Nos últimos anos, instituiu-se a rotina de ver ameaças à democracia só e exclusivamente nuns quantos pequenos gangues de “extrema-direita”, minuciosamente recenseados pela imprensa e vigiados pela polícia. Como se mais ninguém ou mais nada, a não ser uns poucos de skinheads suburbanos, pudesse fazer perigar as instituições. A “extrema-esquerda”, instalada nas universidades e na comunicação social e sempre irreconciliada com a democracia representativa e a economia de mercado, não inspira um reparo. A expansão do Estado é até desejada. A espoliação dos cidadãos, através do fisco, é “justiça social”. E no entanto, nada como esta mistura de estatistimo e de “correção política” parece mais apropriada para subverter as democracias ocidentais. O mundo sem máscaras não promete mais liberdade nem prosperidade. Sim, temos razões para estar inquietos.