A pandemia fez-nos assistir a algumas coisas novas. Por exemplo, quem, depois de cinco anos, já tivesse desesperado de ver alguma dissonância entre o Presidente da República e o chefe do Governo, viu-a no mês passado, a propósito do retorno e da duração do confinamento. O Governo, com a sua “matriz”, restringia a vida dos portugueses; o Presidente discordava.

Teríamos finalmente em Portugal uma divisão política significativa por causa da epidemia? Em alguns países, aconteceu. Nos EUA, no tempo de Trump, ou no Brasil, governos e oposições usaram o coronavírus para se culparem e demonizarem mutuamente. Mesmo já sem Trump, os Democratas ainda continuam de dedo apontado aos Republicanos, acusando-os de serem contra as vacinas (em 2020, tinham-nos acusado do contrário, de apostarem tudo nas vacinas).

Sobre a epidemia, quis-se que só houvesse “ciência”. Mas a ciência não é dogma, é debate. Como lhe compete, falou sempre a várias vozes. Agora, por exemplo, no Reino Unido, médicos e cientistas escrevem para os jornais a alertar para o risco de uma abertura precoce aumentar as infecções; em Portugal, médicos e cientistas escrevem para os jornais alarmados com as consequências de um confinamento persistente para a saúde em geral e para a economia e a educação. Há, portanto, uma política da epidemia. Como descrevê-la? A maneira mais tentadora é por de um lado uma esquerda cada vez mais idêntica às elites “woke” e “snowflake” do Estado e das grandes empresas, e por isso incapaz de ver problemas na quarentena, e do outro lado uma direita agora à procura dos votos do proletariado tradicional, e por isso disposta a defender o direito ao trabalho. No Reino Unido, onde o governo de Boris Johnson roubou a classe trabalhadora ao Partido Trabalhista durante o Brexit, o “freedom day” foi recebido como mais uma ousadia do novo “trabalhismo” conservador. Em Madrid, Isabel Diaz Ayuso também resistiu ao encerramento em nome da economia. Era isso que chegava finalmente a Portugal, com a separação entre um Presidente adepto da abertura e um chefe de Governo fiel ao encerramento?

É claro que não. Nada em Portugal é assim simples. Porque esta semana, foi a vez de António Costa ultrapassar Ayuso e concorrer com Johnson, ao anunciar também ele uma “libertação total”, não para já, mas logo que o Verão acabe, ou seja, daqui a dois meses. Costa, tal como Donald Trump em 2020, confia agora nas vacinas. Em Setembro, segundo ele, a maior parte da população estará inoculada. Teremos então a “imunidade de grupo”. Não haveria mais restrições. Que mais poderiam pedir os dissidentes das quarentenas?

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Qual é o problema desta “libertação total” de António Costa? Não é um problema, são vários. É uma “libertação” que cai do alto, decidida pelo chefe do Governo, o que dá ideia de que a liberdade é uma graça do poder, o que a verdadeira liberdade nunca foi por definição. É também uma “libertação” que escamoteia a verdade do confinamento e que, anunciada desta maneira algo ligeira, não parece atender ao que se está a passar. Porque como cada vez mais gente vem notando, talvez sem António Costa ter reparado, as vacinas não vão eliminar o Covid no mundo. Vão, segundo as melhores expectativas, reduzir dramaticamente a percentagem de casos que evolui para doença grave e eventualmente mortal. Mas, como cada vez mais gente pode confirmar – vacinados e mesmo assim infectados e com sintomas –, não parecem garantir imunidade ao contágio. Por isso, nos EUA, na segunda-feira, o S&P 500 caiu 2%, devido ao receio de que a variante Delta, mesmo com as vacinas, acabe por justificar continuadas limitações às viagens e ao turismo. No entanto, a confirmarem-se as esperanças, a vacinação vai resolver um problema, que foi a verdadeira causa da nova Idade Média dos últimos dois anos: se o número de casos graves e fatais diminuir, os serviços públicos de saúde estarão finalmente livres do espectro do colapso e do descrédito das imagens de hospitais assoberbados, como os do norte de Itália na Primavera de 2020.

Os serviços de saúde, públicos e privados, são hoje o mais parecido com a antiga igreja: são os templos donde toda a gente espera a salvação, não das almas, mas daquilo que os seres humanos modernos mais prezam, os corpos. Os serviços de saúde públicos são ainda a última e grande esperança dos adeptos da estatização da economia, que já não esperam nacionalizar fábricas e expropriar herdades, mas que continuam convencidos de conseguir persuadir a população de que um hospital só pode ser propriedade do Estado. Foi tudo isso que a epidemia ameaçou pôr em causa. Afinal, o sistema de saúde não estava à altura de uma emergência. Pior: os serviços públicos, vistos como a grande fortaleza, arriscavam-se a ser os primeiros a cair. Para salvar a religião sanitária do nosso tempo, os governos decidiram sacrificar tudo, sem excepção: os meios de vida, a educação e mesmo a saúde. Foi esta a razão do confinamento.

Se as vacinas reduzirem os casos que requerem hospitalização, o SNS estará salvo e António Costa, se assim lhe apetecer, será até livre de olhar para a epidemia como Bolsonaro sempre quis olhar, como uma “gripe”. Acontece que mesmo a gripe é capaz, em certos casos, de causar transtornos graves e ter desenlaces fatais. Neste sentido, a “libertação total” de António Costa é uma expressão imprudente, ao sugerir um mundo sem perigos nem cuidados, como talvez esperem muitos dos portugueses que, provavelmente com essa expectativa, gostariam que a vacina fosse obrigatória (72% na sondagem da Universidade Católica para a RTP, divulgada a 19 de Julho).

O confinamento submeteu a vida de todos ao arbítrio do governo, conduzido, como seria inevitável, mais por cálculos políticos do que por qualquer ciência. No Natal passado, uma primeira “libertação total” de António Costa acabou num enorme desastre sanitário. Esperemos que as vacinas impeçam a segunda “libertação total” de Costa de terminar da mesma maneira. Todos, mesmo vacinados e até com os respectivos certificados e “passaportes”, teremos de calcular riscos sanitários de um modo como não fazíamos antes de 2020. Continuaremos também sujeitos a restrições: nos EUA, por exemplo, a Universidade de Indiana já anunciou que a matrícula depende da vacina. Não é o apocalipse: o boletim de vacinas já era usado no passado. Mas é um sinal de que a libertação que todos vão experimentar, no melhor cenário, não é o fim do Covid: é o fim do custo imposto à sociedade pela incapacidade do Estado de enfrentar a pandemia a não ser através do método medieval da quarentena.