Compreendo bem por que motivo os Estados Unidos saíram do Afeganistão. Ao contrário dos velhos impérios do século XIX, as aventuras estrangeiras são hoje muito pouco interessantes para o país invasor, que gasta rios de sangue e dinheiro não podendo colonizar, anexar ou explorar o país para os compensar. Ainda menos num país com relativamente escassos recursos como é o caso. Às óbvias questões morais, acrescentam-se os custos humanos e financeiros para os próprios invasores. Mas a guerra do Afeganistão esteve sempre longe de propósitos imperialistas. A invasão desta república da Ásia Central foi resultado directo dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, há precisamente duas décadas, cometidos pela organização terrorista de Osama Bin Laden.  A Al-Qaeda florescia neste território desértico com a bênção do seu regime islâmico fundamentalista e foi daí que organizou ataques terroristas de larga escala contra os Estados Unidos em Dar es Salaam, Nairobi, Nova Iorque e Washington DC. Mas com Bin Laden morto e a sua organização destruída, há muito que os americanos estavam exaustos do Afeganistão e pretendiam abandoná-lo. O desígnio de Nation Building tantas vezes defendido quer por Republicanos, quer por Democratas (incluindo Bush e Biden), pretendia mascarar a demora em capturar Bin Laden (que só foi encontrado e morto em 2011 em Abbottabad, Paquistão) e o atoleiro em que ambas as guerras pós-11 de Setembro (Afeganistão e Iraque) se tinham tornado. Esse objectivo civilizacional foi progressivamente caindo no esquecimento e hoje todos parecem estar prontos para atirar de vez este tipo de propósitos para o lixo da História.

O principal argumento que temos ouvido para a retirada do Afeganistão é de que os Estados Unidos já se encontravam neste país há duas décadas. E perguntam-nos: quantos mais seriam precisos para que eles se desenvencilhassem sozinhos? Um quarto de século? Meio século? Tendo mérito, esta ideia tem algumas fragilidades: primeiro, assume que os afegãos são um povo irremediável e que o tempo não alterará o resultado do esforço feito. Que pela sua cultura, religião ou etnia estão condenados ao atraso e a servirem de pouco mais do que um aviso aos restantes. Tenho sérias dúvidas de que algum povo tenha em si impedimentos naturais, culturais ou genéticos que o impeça de atingir um nível civilizacional superior. O essencial é criar e desenvolver as instituições certas, tarefa assumidamente árdua e demorada. Assim como não é simples elevar uma população largamente analfabeta, onde as mulheres praticamente não tinham direitos e as meninas estavam impedidas de frequentar a escola. Os avanços nestas duas décadas foram enormes, se bem que muito incompletos, mas arriscam-se a ser desfeitos de um dia para o outro.

A outra parte desta questão é de que a permanência dos Estados Unidos seria algo inimaginável, excessivo ou inédito. Será? Veja-se o que fizeram os Estados Unidos depois de vencerem as potências do Eixo durante a Segunda Guerra Mundial: construíram bases militares e colocaram governos de ocupação em todos eles. Se o governo civil das potências derrotadas foi rapidamente devolvido aos seus cidadãos, com eleições livres, economia de mercado e independência política, o mesmo não aconteceu no âmbito militar, onde a presença aliada não esmoreceu à conta da Guerra Fria com a União Soviética. Até hoje, os Estados Unidos mantêm mais de duzentos mil militares no estrangeiro, espalhados por mais de 800 bases, incluindo várias de grande dimensão na Alemanha, Itália e Japão. Não serão estes três países belíssimos exemplos onde a política de Nation Building protagonizada pela América transformou ditaduras especialmente opressivas em democracias estáveis, economias pujantes e aliados fiéis e poderosos? Pode-se tentar o argumento de que a Alemanha, Itália e Japão eram já países culturalmente e tecnologicamente avançados, mas o mesmo não pode ser dito da Coreia do Sul, ou mesmo de Taiwan, cujas instituições foram criadas já com a ajuda ocidental, num trajecto com vários pontos em comum. Todos eles estão hoje entre os países mais desenvolvidos e livres do planeta.

No sentido inverso, depois da guerra da Coreia, praticamente todas as intervenções americanas deixaram atrás de si um rasto de destruição com Estados falhados dirigidos por senhores da guerra, líderes comunistas ou em total anarquia. Este, para mim, deveria ser um dos grandes objectos de estudo da geoestratégia e diplomacia internacional: o que mudou para que nunca mais se tenha conseguido converter inimigos derrotados em aliados? Não sendo aqui o lugar nem o tempo certo para discutir em detalhe este assunto, resta-me acrescentar que o isolacionismo americano parece estar a tornar-se quase unânime, o que juntamente com a irrelevância militar europeia e o crescimento da agressividade chinesa e russa pode ter graves sequelas num futuro próximo.

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Esta política de America First que Trump verbalizou e Biden assumiu, já vinha fazendo o seu caminho desde o desfecho da Guerra Fria. Com o fim da ameaça soviética, praticamente todos os presidentes americanos prometeram focar-se mais nos seus cidadãos e menos no resto do mundo. Mesmo George W. Bush, até ao fatídico dia 11 de setembro de 2001, era frontalmente contra o envolvimento em conflitos no estrangeiro.

No entanto, o isolacionismo tem consequências, e não só nos habituais jogadores que os estudiosos de John Nash e a sua Teoria dos Jogos já previam. Não serão apenas a China e a Rússia a tomar decisões baseadas no comportamento actual dos Estados Unidos. Em 1994, cinco décadas depois do Holocausto, a minha geração assistiu em directo a um genocídio no Ruanda onde entre 500 e 800 mil pessoas foram assassinadas no curto espaço de três meses. O mundo horrorizou-se, mas nada fez. Todos sabiam que os Estados Unidos, liderados então por Bill Clinton, não iriam interferir e que, sem estes, ninguém faria rigorosamente nada. No ano anterior, depois da humilhação que foi a batalha de Mogadíscio onde corpos de soldados americanos foram arrastados nus pelas ruas, o presidente americano retirou todas as tropas da Somália, deixando o país à mercê dos seus warlords. Os Estados Unidos não seriam mais os “polícias do mundo” para um mundo mal-agradecido, o que levou a que os gangsters, mega-terroristas e pequenos ditadores tivessem carta branca para fazer o que lhes apetecesse sem medo de retaliações externas.

Alguém ficará surpreendido se começarmos a receber notícias de massacres no Afeganistão como aconteceram no Iraque e na Síria, nomeadamente com os Yazidis, os Cristãos ou os Curdos? Ou tentativas de limpezas étnicas e de genocídio como na ex-Jugoslávia ou no Ruanda?

A maior superpotência militar da História pode querer virar as costas ao planeta. Não admira. São muitos os que abertamente desprezam e desdenham o papel dos Estados Unidos enquanto “polícia do mundo”, mas se não forem estes, temo que sejam outros bem piores. Outras potências regionais com menor capacidade militar, menor escrutínio público e internacional, e maior opressão sobre os habitantes locais. A alternativa, provavelmente ainda mais lamentável, é a de povos inteiros abandonados à sua sorte enquanto gangues criminosos, fundamentalistas religiosos e políticos extremistas aterrorizam as populações sem receio de qualquer consequência.

Teremos todos saudades da América.