Quem, por qualquer razão, precise de acreditar no regime socialista português, terá de acreditar nisto: que há coincidências. Coincidências como a não-recondução (pela primeira vez) de um presidente do Tribunal de Contas, no momento em que o país murmura, meio alarmado, sobre a futura gestão dos “fundos europeus”. Coincidências como aquelas em que provavelmente teremos de acreditar nos próximos anos, quando, como já quase todos estamos à espera, se descobrir a ligação ao poder socialista de muitos dos beneficiários das novas facilidades propostas para a contratação pública.

Os “fundos”, os juros baixos do Euro e as liberalidades do BCE têm sido o maná deste regime: disfarçaram a estagnação da economia nos últimos vinte anos, e diluíram a decorrente frustração. Nunca a economia mundial, apesar de várias crises, cresceu tanto como neste princípio do século XXI. Nunca a economia portuguesa, num tempo de crescimento mundial, cresceu tão pouco. Na União Europeia, incluindo na zona Euro, países mais pobres do que Portugal aproveitaram a oportunidade. Durante estes anos de estagnação, Portugal esteve quase sempre sujeito à clique que chegou ao governo com António Guterres em 1995. Mais uma coincidência? Não. A estagnação era o que se poderia esperar de um grupo político para quem a prioridade é o controle da sociedade a partir do Estado. Os socialistas nunca renunciarão a um entrave burocrático, e hão-de criá-lo onde o não houver. Os socialistas nunca deixarão de dividir os portugueses, tratando dos seus dependentes e perseguindo os outros. É assim que mandam. Obviamente, tudo isto tem um custo. O esforço fiscal não é uma coincidência, nem a burocracia, nem a estagnação que de tudo isso deriva. Tal como não é uma coincidência esta chacina de instituições, da Procuradoria Geral da República ao Tribunal de Contas, passando pelo Banco de Portugal. Quem manda como os socialistas mandam, não se pode permitir um eventual escrutínio independente. Os antigos “partidos de protesto” (onde é que isso já vai!) estão devidamente domesticados; o PSD coopera; o presidente da república diz que ajuda; e a imprensa subsidiada tenta não dar por nada. Só faltava pôr algumas instituições com dono. Já o disse e repito: nunca um governo, como este governo minoritário de António Costa, mandou tanto em Portugal desde 1974.

Dir-me-ão: mas poderia ter sido diferente? Alguma vez foi diferente? Sim, houve uma época em que não era assim, e em que o país prometia vir a ser outro. É a época que o Professor Cavaco Silva lembra no seu livro mais recente, Uma Experiência de Social Democracia Moderna (Porto Editora). É costume reduzir os governos de Cavaco Silva entre 1985 e 1995, com Portugal na CEE, à boa conjuntura. Mas desde 1995, não têm faltado conjunturas propícias. E em 1992-1993, também houve uma crise grave. O que sobretudo distingue essa época da actual não é tanto a conjuntura, mas o comportamento da economia portuguesa: entre 1985 e 1995, cresceu mais do que as outras economia europeias, e o seu PIB per capita passou de 55,7% da média europeia em 1985 para 68,3% em 1995. Portugal convergiu com a Europa e desenvolveu algo em que ninguém mais acreditou depois de 1995: um Estado social sem grande endividamento público e sem uma fiscalidade punitiva, mas em que a pensão mínima do regime geral subiu todos os anos 8,4% acima da inflação (p. 45). O programa era outro, muito diferente do que foi seguido depois de 1995. Cavaco Silva chama “social democracia” a uma política que combina “a economia de mercado e a primazia da iniciativa privada” (p. 40) com políticas de “solidariedade e justiça social” (p. 44). Entre 1985 e 1995, o Estado cedeu poder (por exemplo, o exclusivo de sectores de actividade económica ou o monopólio da televisão). Foi um projecto apoiado duas vezes em eleições por mais de 50% dos votantes, em 1987 e em 1991. Tratava-se de liberalizar a economia e ao mesmo tempo obter coesão social. O projecto socialista, que nunca suscitou a mesma adesão eleitoral, foi o contrário: controlar a economia e agravar as divisões sociais. Projectos tão diferentes só podiam ter resultados diferentes. Portugal tornou-se outro país, incapaz de acompanhar a chamada “globalização”. Não foi por acaso que, como Cavaco Silva escreve no seu livro, a convergência de 1985-1995 “não voltou a repetir-se” (p. 9).

E sim, poderia ter sido diferente. Entre 2011 e 2014, em circunstâncias muito estreitas, Pedro Passos Coelho não impediu apenas Portugal de se afundar na bancarrota preparada pelo socialismo socrático. As instituições puderam respirar brevemente, e o resultado foi o desmantelamento de alguns dos mecanismos do poder socialista, como o que passava pela aliança de José Sócrates com Ricardo Salgado. Foram abertas novas áreas de actividade, como a do alojamento local, que permitiu aos cidadãos aproveitar a nova vaga de turismo. A partir de 2013, a economia portuguesa voltou a crescer, depois da quebra a que a sujeitara o governo socialista. O país foi capaz de fazer o que muitos, em 2011, tinham considerado impossível. Em 2015, Pedro Passos Coelho venceu umas eleições que, de acordo com a sabedoria do regime, não deveria ter vencido. Se o esforço reformista tivesse prosseguido, a epidemia teria vindo de qualquer maneira este ano. Mas poderia ter encontrado um país muito diferente, mais resistente, noutro patamar de crescimento económico e de desenvolvimento da sociedade civil.

Isso não aconteceu, porque António Costa em 2015, depois de ser rejeitado pelos eleitores, se coligou no parlamento com os inimigos da democracia — tal como a democracia se desenvolveu em Portugal desde 1976, integrada na NATO e na UE. Na altura, foi uma surpresa para muitos. Não deveria ter sido, até pelo precedente da “geringonça” de 1987, que, sem a intervenção do presidente Mário Soares, teria impedido a “experiência de social-democracia moderna” de Cavaco Silva, tal como a “geringonça” de 2015 impediu o que poderia ter sido a “experiência de social-democracia moderna” de Passos Coelho. A clique política que domina o país desde 1995 não poderia ter feito de outra maneira, se quisesse sobreviver: de facto, também a ela a democracia incomodava cada vez mais, como se vira no governo de Sócrates. Desde 2015, a oligarquia socialista reconstituiu os circuitos do seu poder. Nunca convenceu demasiado (nem nas eleições de 2019, em que finalmente ficou à frente, juntou tantos votos como Passos Coelho em 2015), mas passou a exercer um império quase sem contraditório. O resultado tinha de ser o que foi: um país à espera dos dinheiros nórdicos, mas sem esperança de que sejam usados para proveito de todos. Não há coincidências.

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