1. Um jantar macabro?

Na semana passada, fomos surpreendidos com o jantar de encerramento da Web Summit, que decorreu no Panteão Nacional. Imaginei logo que, se se podia arrendar o Panteão para esse serviço, então também se poderiam conceber umas festas de Halloween, ou até umas rave parties, nos cemitérios comuns. Ainda por cima, as imagens do jantar da Web Summit que circularam, com aqueles vermelhos e aquelas velas, faziam lembrar a estética d’ “O Cozinheiro, o Ladrão, a Sua Mulher e o Amante Dela”, famoso filme de Peter Greenaway, o que tornava toda a ideia ainda mais macabra.

Cena do filme “O Cozinheiro, o Ladrão, a Sua Mulher e o Amante Dela”, de Peter Greenaway

Estéticas à parte, Isabel Melo, directora do Panteão Nacional, esclareceu que na sala onde decorreu o jantar não há corpos. Estando os mortos a uma distância segura, o evento não é indigno e pouco tem de macabro e a questão que levanta é mais geral: devem os monumentos nacionais poder ser usados para estes fins?

Pegando nas últimas notícias, vê-se que é uma prática comum. Não foi há muito tempo que soubemos de uma fogueira de 20 metros no pátio do Convento de Tomar — a pretexto de umas gravações de um filme — ou que tomámos conhecimento de que a Madonna e família tiveram direito a uma visita privada guiada ao Mosteiro dos Jerónimos, já depois de ter fechado ao público. E, pelos vistos, pelo menos desde 2013 que se organizam jantares no Panteão Nacional.

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A minha primeira reacção a estas notícias, todas elas, foi achar que a nossa história não estava a ser devidamente respeitada. Por outro lado, compreendo os argumentos de quem defende que a história deve ser celebrada com vida e actividades lúdicas. Achar que se desrespeita a História porque se faz um filme num convento histórico é, de certa forma, um preconceito. E, sendo crónico o subfinanciamento da cultura e do património cultural no nosso país, não faz sentido privá-los destas receitas extra.

2. Partida, lagarta, fugida!

Em princípio, a Escola André Soares será a escola das minhas filhas aqui em Braga. A mais velha irá para lá já no próximo ano. É assim natural que eu siga com atenção as notícias dessa escola.

Há um ano, foi a notícia dos pais de um aluno que agrediram uma professora que me deixou algo preocupado e me trouxe a dúvida. Mesmo assim, lá decidi que seria essa a escola da minha miúda. Desde então, e por muitas vezes, a minha filha de 9 anos contou-me que a comida da André Soares é horrível. Por várias vezes, quis discutir o assunto connosco, perguntando, por exemplo, se poderia ir comer a algum restaurante lá perto ou se podia ir comer a casa de algum colega ou a casa de uma amiga nossa ou qualquer outra alternativa. A má comida da André Soares é, portanto, lendária em Braga. Mas por diversas ocasiões descartámos qualquer conversa, pensando que tudo não passava de imaginação das crianças.

E, de repente, somos confrontados com um vídeo de uma lagartinha a comer do mesmo prato que uma aluna (o vídeo pode ser visto aqui). Deve ser esta a definição de refeição biológica. Mas a reacção dos responsáveis da Escola – abrir um processo disciplinar à aluna que fez o vídeo, Sofia Gois – foi lamentável. Bem sei que a notícia já foi desmentida pelo Conselho Directivo, mas a verdade é que os detalhes fornecidos pela mãe levam-me a acreditar nela e a pensar que o processo disciplinar teria mesmo avançado não fosse a irritação gerada.

Tudo isto é verdadeiramente indigno. Numa época em que as escolas passam o tempo a ensinar cidadania aos alunos, numa altura em que se celebra a Web Summit, que faz de nós o centro das atenções tecnológicas do mundo, temos as escolas a tentar aplicar a lei da rolha e a impedir que os alunos façam vídeos. É um belo requiem para a revolução 4.0 em Portugal.

A aluna fez o que tinha a fazer. Ser exigente e não aceitar a porcaria que lhe dão para comer todos os dias. E se a esquerda acredita que a escola pública é a principal escada social, então não se pode limitar a acabar com os contratos de associação. Não se pode alargar a escolaridade obrigatória e depois não investir na escola. Num país tão desigual como o nosso, onde os dados sobre a pobreza infantil são chocantes, a refeição tem de ser uma das prioridades. Não pode ser de outra forma.

Não pode ser de outra forma, mas tem sido de outra forma. Há um mês, a TSF investigou quanto é que o Estado andava a pagar pelas refeições nas cantinas. Nas centenas de contratos analisados, as câmaras municipais pagavam entre 1,07 euros e 1,66 euros às empresas fornecedores. Já a Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares compra milhões de refeições a preços que ficam entre os 1,18 e 1,47 euros (e os alunos, dependendo dos seus rendimentos, pagam entre zero e 1,46 euros).

Se estes valores lhe parecem muito baixos é porque não está a pensar bem. Estes valores têm de incluir a matéria-prima (ou seja, a comida), a confecção, os empregados, o transporte e o lucro. De acordo com o diretor do programa de promoção da Alimentação Saudável da Direcção-Geral da Saúde, para a matéria-prima sobram 50 cêntimos. Os valores não são baixos, são ridiculamente baixos. Com valores destes, é materialmente impossível garantir uma boa refeição às crianças que frequentam as escolas públicas. Com comida desta, a presença de uma lagarta até aumenta o valor nutricional do almoço.

3. A indignidade serve-se num prato frio

A escolaridade mínima é obrigatória, mas, ainda assim, como a escola não é uma prisão, comer na cantina não é inevitável. Numa prisão, não há alternativa.

Foi no ano passado que o Provedor da Justiça de então, José de Faria Costa, fez um périplo por várias prisões descrevendo-as assim: «Cadeias sobrelotadas. Ambientes húmidos e, por vezes, sombrios. Celas pequenas e com mobiliário desgastado pelo uso contínuo. Comida fria e, em algumas situações, parcamente fornecida.» Parece que a indignidade é como a vingança: serve-se num prato frio.

Podemos perguntar-nos se a culpa será não dos governos, mas sim da gestão das prisões. Mas o Provedor desmente essa ideia deixando claro que os «nossos estabelecimentos prisionais são também o reflexo da diligência de quem os dirige e de quem neles trabalham», tecendo de seguida diversos elogios. Ou seja, se não se faz melhor, não é por falta de vontade e de engenho de quem trabalha nas e para as prisões.

A ministra da Justiça, há uns dias, disse que os reclusos não passam fome. Note-se o patamar em que está a discussão. Já nem se discute a qualidade da comida, já só se alega que não passam fome. Mas, na verdade, o Provedor de Justiça diz-nos que nem isso é verdade. Passo a citar o seu relatório à Prisão do Vale dos Judeus: «No dia da minha visita, o almoço era composto por uma sopa de caldo verde e, como prato principal, entremeadas com arroz. Deram-me uma tigela com sopa que estava fria e, perante o meu desagrado, serviram-me uma outra taça com sopa que, a ajuizar pelo recipiente em que se encontrava, acabara de chegar. Fumegante ao destapar, esta estava quente. Em ambos os casos, reparei que a couve foi usada de forma parcimoniosa. Experimento, seguidamente, o conteúdo de uma cuvete individual, notando que a quantidade de arroz e de carne pode ser considerada, para a alimentação de um homem adulto, insuficiente.»

E, já que falámos em escolas e em prisões, podemos ir ver o que se passa numa prisão-escola (de Leiria). Diz o Provedor: «A sopa que provei não estava consistente. Os dois pedaços de rolo de carne eram insuficientes para garantir que os jovens adultos se sintam saciados».

Num Estado de Direito, não se manda as pessoas para a prisão (muitas delas presumíveis inocentes, dado que 15% dos reclusos está em prisão preventiva) para depois não as alimentar. A isso chama-se tortura. É uma falta de respeito pelos direitos humanos básicos.

Visita de Natal da ministra da Justiça à Prisão Feminina de Tires

E, perante esta desumanidade, o que tem a ministra da Justiça a dizer-nos? Aceita uma redução desta rubrica orçamental em 10,8 milhões de euros, reduzindo o custo médio por refeição de três euros e meio em 2015 para um euro e trinta cêntimos em 2018, e argumenta que a qualidade das refeições é boa, apesar de não tão boa como nos restaurantes no Parlamento. Mas lá reconheceu que as «verbas não cobrem as necessidades totais».

Estes valores levantam uma questão preocupante. Se em 2015 cada refeição, de facto, custava 3 euros e meio (quase três vezes o que o Estado paga por muitas refeições nas escolas), como se justifica que as refeições fossem tão más como as descritas? Um custo elevado para tão baixa qualidade de serviço sugere que o Provedor de Justiça José de Faria Costa terá talvez sido demasiado ingénuo no que respeita ao empenho e lisura de quem trabalha nas e para as prisões. É um assunto que parece merecer investigação.

A actual ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, iniciou o seu mandato em 2015 indo a um jantar de Natal com as reclusas da Prisão de Tires. Ou esse acto inaugural não passou de mera propaganda, ou então a ministra não tem peso político para melhorar a alimentação dos reclusos. De uma forma ou de outra, só há uma saída digna.

Adenda. Várias pessoas me chamaram a atenção para um erro no artigo. Na verdade, o valor das refeições dos reclusos baixa para cerca de 1 euro e 30 cêntimos. Mas este valor não é por refeição, mas sim por dia. Ou seja, estamos a falar de um patamar de indignidade ainda mais elevado. E os 3 euros e 30 cêntimos que vigoravam também eram diários e não por refeição. Pelo que, na verdade, também com o orçamento anterior não é razoável esperar refeições de elevada qualidade.