1 Foi há muito tempo que a conheci, algures entre a terra e o céu, voando sobre o grande oceano a que ambas pertencíamos. Uma deste lado do Atlântico, a outra, do outro. Num longo voo entre Lisboa e o Rio, abri um jornal brasileiro e de repente dei com Nélida. A descoberta foi tão forte que consigo hoje rever esse momento como se tivesse acabado de o viver. Inteiro. Um momento raro, cheio, transbordante de espanto e o fulgor, de onde a fábula e a realidade escorriam com o mesmo generoso ímpeto.
Nélida Pinon, escritora e efabuladora mas que nessa hora o jornal ouvia na qualidade de recém eleita primeira mulher para a presidência da Academia Brasileira de Letras (ABL). Suprema honra. Passava-se isto nos idos de noventa do outro século, num arco temporal onde não só eu ia muito ao Brasil como tentava manter-me atenta ao seu ar do tempo político e cultural, sobretudo no Rio, S. Paulo, Brasília. Escrevendo, reportando, entrevistando. Mas ainda não a Nélida Pinon. Lendo porém a “matéria” jornalística que nos apresentava a nova presidente da ABL decidi durante o próprio voo que ela seria prioridade absoluta na estadia carioca. E foi. (Lembro-me até de ter pensado em como a minha irmã Maria José iria gostar de também ler aquele texto, que recortei e trouxe para Lisboa. E gostou).
Como as coisas são. Ou podem ser: a leitura casual de um jornal durante um solitário voo sobre o Atlântico transformou-se por obra e graça de algum duende, na semente de uma fortíssima amizade que, quase de forma instantânea, brotaria dias depois. Florescendo sempre fecunda, sempre com viço, até há dias atrás. Quando sem pré aviso nem despedida, longe do seu berço natal e de seus amigos, ela partiu de um hospital lisboeta, para destino que olhava com o fascínio que pode trazer a incerteza.
2 Dois ou três dias depois da chegada ao Rio de Janeiro, pedi para ser recebida na Academia. Inexplicavelmente apresentei-me mal vestida (alpergatas, bermudas, etc., um disparate que a leveza carioca e o verão tropical nunca explicarão, nem perdoarão). Nelida notou, mas (vim a sabê-lo por ela mais tarde) passou adiante, presa a uma surpresa intrigada: que poderia querer dali uma portuguesa em tão despropositados preparos, numa Academia de Letras e por ela presidida? (Nélida amava Portugal e ainda mais os portugueses. A sua fidelidade era de aço “doublée” do encanto seu verbo cantado. Sabia “a riqueza e plasticidade da língua portuguesa” que achava “opulenta e generosa” e que “nunca falhara a ninguém no Brasil, nem na poesia, nem na prosa”).
Sôfrega de curiosidade e pronta ao deslumbramento expliquei simplesmente que fora um artigo de jornal que ali me levara e que face ao que lera “tinha de a conhecer”. E ela, que ria com os olhos, que semicerrava com delícia quando as coisas ou a vida lhe iam a contento, riu. E iniciou então uma coreografia de palavras com as quais e por entre as quais deambulou, numa navegação em língua portuguesa como vira poucas. Percebi instantaneamente que estava ali em carne e osso a voz feminina talvez mais singular que me fora dado ouvir até então.
Mais que mulher de letras, “escolhedora” de palavras, inventora de fábulas e mais que “escritora”, porque havia estrépito e anúncio no que escrevia, era uma criadora. Serei sempre incapaz de a resumir e menos ainda de definir. Ficaria aquém. Fiquei sempre.
3 Alguns dados prosaicamente indispensáveis: Nélida Pinõn nasceu em Espanha em 1937, os quatro avós eram galegos, passou a infância em Portugal, estudou filosofia, leccionou em várias universidades, vivia no Brasil (“ a minha família no Brasil é mais jovem que as palmeiras imperiais de D. João VI”). Publicou o seu primeiro livro em 1961, escreveu muitos, ganhou diversos prémios literários, internacionais.
“Guardo desde criança uma irrestrita fidelidade ao destino da escritura” contou um dia, “sou filha dos livros e da imaginação. Desfrutei de uma liberdade de pensar e de inventar desde menina”.
Escrevi sobre ela algumas vezes (e de alguns desses bocados de prosa me sirvo hoje), porém sempre com mais timidez que segurança, e nunca sobre a sua literatura. Faltava-me competência e saber, Nélida transcendia. E eu interrogava-me como radiografar com as minhas próprias palavras um discurso disconforme com o seu aparente caos? E no entanto… tudo nela contagiava, e me contagiava: o brilho da verve, a energia intelectual, uma cultura também ela opulentíssima, o fulgor da sua inteligência, a originalidade sempre em estado puro, não era igual a ninguém, não “fazia” lembrar ninguém, não se parecia com ninguém: era o tal estrépito. Não, não era caótica mas a arte, sim: “a arte tem uma origem caótica”, dizia. Porventura como naquelas suas vivíssimas incursões orais por esse português verbo amado, quando, dias fora ou noites dentro, animava fóruns ou salas de qualquer pátria com o sopro de um espírito alerta, a luminosidade da sua cultura, a alma feminina e feminista. Uma originalidade com assinatura.
“A cultura capta os instantes dos homens, está entre eles para semear a discórdia, o fluxo das emoções desmedidas mas reveladoras”.
Era uma mulher múltipla e sem idade. De “muitos tempos, épocas e eras”, lembrava-me por vezes uma feiticeira, ou maga, ou mágica. Uma coisa assim, que eu nunca vira, de cuja singularidade era difícil dar notícia: de que modo transmitir a novidade de que ela era portadora?
“Sou herdeira dos celtas, dos druidas,dos deuses pagãos, sou uma mulher do século II, quando os deuses estavam soltos e desabridos, porque sabiam que iam ser desalojados da terra por força da presença dos cristãos, vorazes e devoradores.”
Nessa época de idas e vindas além mar, como esta que hoje refiro havia outros e mais diversificados périplos pelo Brasil fora, mas a rede de amigos era sobretudo no Rio que se ia tecendo. A malha foi ficando fortemente cerzida — artistas, escritores, arquitectos, políticos, jornalistas, músicos, cantores, diplomatas — mas logo desde o dia da Academia Brasileira de Letras, Nélida teve lugar cativo nesse valiosíssimo lote de amizades e cumplicidades. Em lugar de destaque. Ou mesmo à parte. Como competia e lhe competia.
4 Se o conhecimento da escritora e então presidente da Academia Brasliseira de Letras nessa inesquecível tarde quente do Rio de Janeiro, me retribuiu, ampliada, a primeira impressão que dela recebi, como agradecer a maravilhosa doçura do que se seguiu?
Foi tudo tão natural. A primeira vez que Nélida veio a Lisboa, avisou antes, ligou à chegada, foi ao Campo Grande, conheceu todos. A partir dessa espécie de baptismo familiar os laços entre os da nossa casa e da casa da Maria José e do Jaime passaram a ritual: imutável e maravilhoso. No Brasil, idem, quando algum de nós lá ia e fomos sempre muito. O ritual durou anos e anos, resistiu a distâncias e pandemias, durou sempre, durou até agora. Conseguindo manter-se intacto embora dorido, após a partida da Zezinha que desfez a Nélida de dor.
5 Há coisas que nos desconcertam pelo seu acerto. A Nélida foi um presente que a vida nos deu. Começou com um acaso, terminou com um compromisso natural, de amizade. Generosa, aparatosa, sublime, Nélida Pinõn merece o céu onde estará a ver a chegada do Menino Jesus aqui abaixo, mesmo se não acreditava muito nele. Acredita ele, nela.
6 Faço questão em que esta breve, sentida e tão sentimental evocação seja com as palavras da própria Nélida Pinõn. Sobre a mulher. Uma homenagem feminista fortissimamente interpelativa que em nada se confunde com os despojos feministas que agonizam hoje dentro de destroçados fantasmas. Ouçam-na. Apetece cantar esta linguagem tão própria:
“A memória da mulher encontra-se na Bíblia. Ainda que não tivesse sido ela a interlocutora de Deus. Esta memória encontra-se igualmente nos livros que não escreveu. Uma memória que os narradores usurparam enquanto vedavam à mulher o registo poético da sua experiência. Ao se fazerem eles, porem, desta memória os interpretes únicos, fatalmente nutriram-se da malha de intrigas, dos diálogos amorosos, das confissões feitas no leito de morte, da preciosa matéria, enfim, guardada no coração feminino. Em algum lugar desta mulher e unicamente ali, alojaram-se para sempre os espinhos das intermináveis peregrinações humanas sobre a terra, sem os quais nenhuma obra de arte teria sido escrita. Portanto a mulher bem pode proclamar, em nome do legado que cedeu á humanidade, ser ela também a outra cara de Homero, de Shakespeare, de Cervantes. Guardiã eterna dos sentimentos oriundos dos homens e dos deuses, a mulher preservou no aqueduto da sua singular memória a fulgurante e dramática história universal. Preservou os vestígios de uma memória ancestral que, somada ao seu próprio foco narrativo, a induziram a exercer no passado o seu ofício de olheira. A praticar no meio de tantas afrontas, a rebelião que constituía simplesmente em fazer aflorar, cada dia, a sua memória recalcitrante, preterida sempre pela memoria eloquente e sábia do homem…”