Conceitos do Político, de Pedro Mexia, é uma sofisticada e elegante censura ao apoio dado a Donald Trump por um “conjunto de intelectuais quase todos ligados à direita conservadora”, subscritores do manifesto Against the dead consensus, publicado e divulgado pela revista americana First Things.
O mote do manifesto, cujo primeiro subscritor é Sohrab Ahmari (editor do New York Post), consiste na inviabilidade do regresso do “consenso conservador” pré-Trump e enquadra-se no dilema que aqueles que se definem como de “direita”, mais ou menos conservadores, hoje enfrentam e que, muito simplisticamente, se poderia resumir no seguinte: ou persistir educadamente na tentativa reformista, a partir de dentro do status quo, num confronto ordeiro, ou ordenado, com os adversários e na esperança de que a força do diálogo prevaleça; ou assumir uma posição beligerante de ruptura perante o status quo e os adversários, na convicção de que sem ruptura e sem a determinação de anular a força dos adversários (a esquerda, em geral) não é possível sequer sobreviver. A questão não é exclusivamente americana, estendendo-se a praticamente a todo o mundo ocidental. Mesmo entre nós, em Portugal, o dilema é agudo e há gente respeitável e respeitada (mas também desrespeitável e desrespeitada) a prosseguir por qualquer das alternativas.
Para Sohrab Ahmari e seus compagnons de route, a escolha é inequívoca: só a via trumpista de ruptura permite defender a ordem de valores tradicionais, contra o avanço inexorável do liberalismo progressista, tornando-se inevitável o fim do “consenso conservador”.
A morte do “consenso conservador”, ou para simplificar, o “dissenso conservador” é interpretado por Pedro Mexia como uma forma aplicada da “teologia política” de Carl Schmitt, nos seguintes “termos schmittianos: definir o inimigo, declarar-lhe guerra, combatê-lo com os instrumentos do Estado, vencê-lo”. Depois de se enformar as teses do “dissenso conservador” na tal teologia política, conclui-se que, apesar de “ousado e inteligente”, o “schmittianismo de Ahmari e da First Things peca por ignorar ou fingir que ignora: 1) que a democracia é o regime do pluralismo e não apenas das maiorias; 2) que os valores da ordem, continuidade e coesão social só podem ser defendidos com autoridade por aqueles que vivem segundo esses valores, não por oportunistas, hipócritas ou cínicos; 3) que Schmitt nunca cometeu a infantilidade de fazer do inimigo a personificação teológica do mal; 4) que até a Bíblia pergunta ‘Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma?’”.
Trata-se de uma interpretação forçada e apressada que acaba por se equivocar, ao não compreender rigorosamente o pensamento sobre a realidade que motiva e orienta aqueles autores.
Desde logo, a referência a um novo “schmittianismo” de Ahmari e da First Things é uma generalização desajustada, como se a atividade editorial da First Things tivesse pretensões de intervenção política direta ou estivesse exclusivamente ao serviço de uma “guerra cultural” assumida para concretizar a eliminação do adversário. E se é verdade que Sohrab Ahmari não esconde a necessidade de combater e derrotar o adversário, inclusivamente com os recursos do Estado, não parece que o faça em “termos schmittianos”, ou por inspiração inequivocamente schmittina.
Quando se defende a inevitabilidade do dissenso conservador, na sequência da chegada de Donald Trump ao poder, não está em causa uma opção, entre outras alternativas possíveis, pela “teologia política” de Schmitt (que nunca é mencionada). Lembremo-nos de que, entre os subscritores do manifesto, se encontram, além de apoiantes de primeira hora de Trump, votantes relutantes e, até, antigos adversários, resgatados das fileiras de Hillary Clinton. Sublinhe-se, também, que a mundividência judaico-cristã destes autores é marcada pela noção de que, na vida terrena que conhecemos, se desenrola uma “guerra” ou um “combate” contra um inimigo poderoso (mas não todo-o-poderoso), que se manifesta nas realidades da vida, tal como se descreve, ou profetiza, em todos os livros da Bíblia, desde o livro de Génesis ao Apocalipse. Portanto, colar integralmente a lógica do amigo/inimigo subjacente às ideias de Ahmari e companheiros à “teologia política” laicizada de Carl Schmitt, não só é um exagero, como também pode criar a suspeita de que tal interpretação é motivada por uma tentativa de descredibilização da própria First Things enquanto publicação de assumida influência religiosa.
A opção pelo dissenso conservador radica em circunstância mais prosaica, que surpreendentemente não é notada por Pedro Mexia: a constatação desesperada e desiludida de que o adversário político (a esquerda, em geral), afinal, não está interessado nem disposto a aceitar como razoáveis, discutíveis e legítimas as propostas da direita (em geral) para a organização da comunidade política, sobretudo das que provém mais direta e necessariamente das raízes culturais judaico-cristãs. Várias causas explicam este afastamento, mas, em última instância, quem ditou a sentença de morte do consenso conservador não foi nem Sohrab Ahmari, nem a First Things; foi, ainda que inconsciente e involuntariamente, o “outro lado”, que se foi radicalizando, com o crescente predomínio da pós-modernidade secularista. Aliás, naquele manifesto reconhece-se explicitamente o mérito “heróico” (sic) do “consenso conservador” na contenção da ameaça comunista, na construção de sociedades prósperas e da promoção de uma ordem internacional submetida ao Direito e respeitadora da dignidade da pessoa humana, durante o século XX. O longo período de paz e de relativa prosperidade, na Europa ocidental do Pós-Guerra e da Guerra Fria, foi conseguido, precisamente, graças a amplas bases de consenso entre democratas-cristãos e sociais-democratas. Ora, a rejeição cada vez mais intensa e agressiva da revelação judaico-cristã e a aproximação – possibilitada pela queda do Muro de Berlim – da social-democracia a franjas extremadas à esquerda, cada vez mais largas, foram esboroando as bases daquele consenso e provocaram, inevitavelmente, uma reação férrea daqueles que não estão dispostos a ver desmoronar-se definitivamente os pilares da civilização ocidental, cimentados por mais de 1500 anos de cristandade. Acresce a isso desequilíbrios sociais e económicos graves, efeitos colaterais do processo de globalização da economia, que progressivamente acumulou multidões desencantadas e relativamente empobrecidas, dentro dos países ocidentais desenvolvidos, criando bolhas de pressão que afastaram os povos das elites políticas vigentes.
Aqui chegados, chegamos a Trump (e similares) e à sua entrada no jogo democrático – o que, por razões óbvias, muito preocupa a esquerda (em geral) e, por razões menos óbvias, mas compreensíveis, parece muito preocupar os indefetíveis defensores do “consenso conservador”, como uma ameaça ao próprio pluralismo democrático.
Mas se a democracia é, de facto, o regime do pluralismo, e não só das maiorias, quem é que verdadeiramente a ameaça? É Trump ou são os que, antes dele, por todo o mundo, foram, nos últimos 30 anos, alienando a soberania dos Estados – mais ou menos justaposta à “vontade” democrática dos povos – para organizações governamentais e não governamentais, as mais das vezes sem qualquer mandato popular ou legitimidade democrática? É Trump ou são as organizações sincronizadoras das opiniões das massas que promovem o “cancelamento”, para não dizer obliteração, das vozes dissonantes, num sistema de censura e sabotagem a que só podem resistir os que não têm quaisquer dependências financeiras – isto é, os ricos? É Trump ou são os que prometem mudar as regras do jogo na eleição dos juízes do Tribunal Supremo só porque não concordam com as tendências da atual composição do tribunal? E, transpondo para exemplo português, é Trump – e os do dissenso conservador – ou são forças e partidos políticos que não admitem como razoáveis, discutíveis ou legítimas as propostas dos adversários e, sem olhar a custos, não hesitam em reverter decisões políticas legitimamente tomadas por governantes legitimamente eleitos, como fez a nossa geringonça, logo a partir do dia 1, com a reversão de privatizações, das 40 horas de trabalho semanais na função pública, da isenção de taxas moderadoras para abortos, etc., etc., etc.? Qual é a equação para achar bases para um consenso “pluralista”, neste contexto?
Por outro lado, é insólita a sugestão de que Trump não tem autoridade para defender “os valores da ordem, continuidade e coesão social”, porque não vive “segundo esses valores”, sendo apenas um “oportunista, hipócrita ou cínico”. É evidente que Donald Trump não é um impecável menino de coro e no seu percurso biográfico não faltam episódios moralmente questionáveis, nem contradições incompreensíveis – isso é público e notório e nem os seus votantes o negam. Mas só por moralismo puritano se poderá embargar a autoridade de um homem democrática e legitimamente eleito para defender os valores a que se propôs defender em campanha eleitoral e no estilo que também prometeu. Em que é que nisso se revela mais oportunista, hipócrita ou cínico, em comparação com as promessas e mandatos de outros presidentes dos EUA e, potencialmente, de outros candidatos? É Trump mais oportunista, hipócrita ou cínico do que Obama, Bush, Clinton(s) e Biden, por exemplo? Não foi Trump quem criou a sua circunstância e oportunidade. Foi a circunstância que deu lugar a Trump (e similares) e o mandato presidencial de Trump só surpreendeu os que não acredita(va)m na plausibilidade do dissenso conservador, que não eram poucos – basta recordar que, em 8 de novembro de 2016, muitos duvidavam que o Presidente Trump pudesse manter viva a persona Trump do Twitter.
Se fazer do inimigo a encarnação do mal é uma infantilidade, o que dizer da esmagadora maioria dos adversários de Trump nos meios de comunicação social, que vive obcecada em afirmar que Trump (e similares) é o mal em pessoa, recusando-se a avaliar com objetividade a Administração Trump e os efeitos (positivos e negativos) que produziu nos EUA e no mundo? Para essa esmagadora maioria, Trump (e similares) é mesmo o mal encarnado e tudo vale para o remover do poder, como o ilustrou uma capa da Visão de há poucas semanas.
Para Carl Schmitt, contudo, o inimigo não é necessariamente a personificação do mal porque isso seja uma infantilidade, mas porque as categorias de bem e de mal não pertencem primordialmente ao campo da política, mas da ética e, podemos acrescentar, da moral e do Direito. Mais uma vez, o pensamento dos subscritores do dissenso conservador não pode ser interpretado à luz de um sistema de pensamento schmittino – que, aliás, não professam, nem confessam –, mas só pode ser compreendido no quadro da cultura judaico-cristã. A fenomenologia do mal, ou o mistério da iniquidade, causa a maior perplexidade e angústia ao Homem criado por e para o amor, destinado a contemplar a bondade, a verdade e a beleza. Mas o mal existe, é imoral negá-lo – dizia Leonardo Coimbra. E o mal manifesta-se, insinua-se, nos pensamentos, palavras, atos e omissões concretas dos homens (de todos os homens), que são, assim, agentes, quando não escravos, do mal que existe. Em última análise, na perspetiva judaico-cristã que inspira a First Things, a lógica amigo/inimigo não corresponde a identificar o amigo como a pessoa do bem ou pessoa benigna e o inimigo como a pessoa do mal ou pessoa maligna, mas identificar e reconhecer a maldade dos pensamentos, palavras, atos e omissões do outro, mero agente ou escravo do mal, que, nesse sentido, poderá ser circunstancialmente o inimigo maldoso e malicioso.
Não podendo também Trump ser a “encarnação do mal”, apoiar e desejar a sua vitória eleitoral e a implementação do seu projeto político não será causa de perdição, porque, do que foi dado a conhecer do seu primeiro mandato e do que promete para o segundo, tal não implica opções políticas de fundo que em si mesmas possam ser consideradas como manifestações inequívocas do mal (ao contrário de várias propostas do seu adversário), apesar de, como toda a gente, Trump não estar imune a ser agente ou escravo do mal. O versículo do Evangelho citado em “Conceitos do Político” (*) é retirado de um episódio em que Jesus fala sobre os caminhos que levam à perdição e à redenção. Como se Pedro chamasse o Mestre à parte para o censurar, escandalizado com o anúncio de que o da redenção requeria a cruz, Jesus “voltou-se, olhou para os discípulos e repreendeu Pedro: ‘Sai da minha frente, Satanás! Só percebes as coisas humanas e não as de Deus.’” (**)