Segundo Niall Ferguson, entrevistado por Fareed Zakaria em Julho deste ano, o Partido Republicano “voltou às suas raízes”. Ferguson recorda que o Partido Republicano foi “um partido protecionista durante a maior parte de sua história”. Nos seus primeiros anos, o Partido Republicano defendia as tarifas como um instrumento comercial corrente, o que contrastava com o Partido Democrata do século XIX, que representava os interesses do Sul dos Estados Unidos da América (EUA), uma região favorável ao comércio livre. O Partido Republicano “só se reconciliou com o livre comércio, a livre circulação de capital e de pessoas quando a Guerra Fria terminou”. Desde então, e até a nomeação de Donald Trump como candidato às presidenciais de 2016, verificou-se um consenso bipartidário (Partido Democrata e Partido Republicano) favorável ao comércio livre, ou, pelo menos, um consenso entre as elites dos dois partidos presentes no Congresso dos EUA.

O artigo “Trump’s trade agenda takes a GOP back a century”, de Timothy B. Lee, publicado, a 4 de janeiro de 2017, no site de notícias Vox, esclarece como a primeira administração Trump não desafiou a história do Partido Republicano no que toca à forma como moldou as relações comerciais entre os EUA e o exterior. No século XIX, o Sul dos EUA baseava-se numa economia agrícola voltada principalmente para a exportação, e, alinhando-se com o programa do Partido Democrata da época, os sulistas tendiam a defender o comércio livre. Por outro lado, no Norte, onde se concentravam as indústrias, predominava uma posição favorável à imposição de barreiras comerciais para proteger as indústrias locais da concorrência internacional. Como menciona Lee, uma tarifa protecionista, normalmente elevada, era uma posição padrão do Partido Republicano. O presidente dos EUA, Calvin Coolidge, um dos republicanos mais conhecidos da pré-II Guerra Mundial, chegou a escrever: “A nossa única defesa contra a produção barata, os baixos salários e as baixas condições de vida que existem no estrangeiro, e o nosso único método de manter os nossos próprios padrões, é através de uma tarifa protecionista”. Coolidge governou os EUA na década de 1920, durante um boom económico que antecedeu a Grande Depressão. Antes disso, o presidente Theodore Roosevelt, que governou os EUA durante a transição do século XIX para o século XX, escreveu, num artigo para o New York Times, que “a indulgência perniciosa na doutrina do comércio livre parece produzir, inevitavelmente, a degeneração gorda da fibra moral”. A herança do Partido Republicano, na implementação de tarifas nos EUA, atingiu o seu auge com a Tarifa Smoot-Hawley (Smoot-Hawley Tariff Act) de 1930. Esta tarifa, assinada pelo presidente republicano Herbert Hoover, é apontada, segundo alguns analistas (nomeadamente libertários e conservadores), como a origem de uma guerra comercial e do prolongamento da Grande Depressão.

Apesar do livre comércio se ter tornado indissociável do pensamento dominante no Partido Republicano, no pós-Guerra Fria, foi pouco após a II Guerra Mundial que o partido começou a defender abertamente acordos internacionais de livre comércio. Basta recordar o primeiro presidente republicano do pós-II Guerra Mundial, Dwight D. Eisenhower, que, a 7 de abril de 1953, pediu ao Congresso que estendesse por mais um ano o Reciprocal Trade Agreements Act. Este decreto-lei autorizava o presidente dos EUA a negociar com outros países acordos destinados à redução de tarifas. Por sua vez, durante pelo menos as três décadas subsequentes à Guerra Fria, os Democratas foram conhecidos por serem mais protecionistas do que os Republicanos. No entanto, os 42º, 43º e 44º presidentes dos EUA (o primeiro e o último, Democratas, e o segundo, Republicano) foram igualmente favoráveis à liberalização do comércio.

Não obstante essa tendência, os republicanos da Guerra Fria e do início deste século não foram fundamentalistas do livre comércio. O próprio Ronald Reagan, frequentemente associado a Margaret Thatcher e às caricaturas do “neoliberalismo”, procurou estabelecer acordos que limitassem a importação de automóveis, aço, açúcar e produtos têxteis. Chegou até a assinar um acordo que tornou as exportações japonesas para os EUA mais caras, através da valorização do iene (a moeda japonesa). Robert Lighthizer, veterano da administração Reagan e advogado de comércio, recorda este período. Lighthizer, que foi Representante Comercial dos EUA, durante toda a administração Trump, e também actuou, no Departamento de Representação Comercial dos EUA, durante a administração Reagan, é da opinião de que uma posição protecionista algo moderada é verdadeiramente conservadora. O presidente George W. Bush, em 2002, implementou tarifas sobre o aço importado, que foram levantadas no mesmo ano, apesar da cessação dos seus efeitos ter sido inicialmente agendada para 2005. Para ilustrar como o Partido Democrata via a aplicação dessas tarifas, cuja taxa variava entre 8% e 30%, basta recordar que o então líder dos Democratas na Câmara dos Representantes, Dick Gephardt, criticou a administração Bush por não ter ido longe o suficiente.

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É possível aplicar tarifas de forma racional e mensurada. Michael Finch, no seu artigo “Hysteria Over Trump and Tariffs”, disponível no site da revista eletrónica de comentário político Frontpage Magazine, a 14 de março de 2018, apresenta dois argumentos para que as tarifas estejam ao dispor de qualquer governo dos EUA. Não me alongarei mais sobre o argumento histórico, repleto de exemplos sobre como o Partido Republicano dos EUA se posiciona favoravelmente às tarifas. Em primeiro lugar, o fabrico nacional de aço é crucial para que um país seja estrategicamente independente e esteja preparado para enfrentar combates no exterior, pois é o aço que garante um desempenho minimamente eficaz em conflitos armados em que a participação seja considerada de interesse nacional. Como afirma Finch, como teriam os EUA “vencido a II Guerra Mundial” se não tivessem “uma indústria de aço”? Em segundo lugar, e reforçando a necessidade de um caráter seletivo e direcionado nas tarifas a aplicar, um país como os EUA não deve ser generoso ao ponto de permitir que países ou organizações internacionais apliquem tarifas a produtos norte-americanos, enquanto os próprios EUA isentam de tarifas produtos provenientes dessas mesmas entidades. Por exemplo, a taxa que os EUA impõem aos veículos importados da Índia é de 0%, enquanto a Índia aplica uma tarifa de 100% nos veículos importados dos EUA. É um sinal de competência e visão a longo prazo quando o governo de um país procura pressionar outros países a reduzir as tarifas que impõem, buscando acordos mais justos e recíprocos com seus aliados ou parceiros mais confiáveis. Não devemos esquecer que Trump veio a reduzir a tarifa que aplicou ao México e ao Canadá.

Já Olavo de Carvalho denunciava, em 2005, que “em todos os supermercados populares dos EUA”, como o Walmart, “é difícil encontrar algum móvel ou eletrodoméstico barato, com marca americana, que não seja fabricado na China”. No seu artigo “A China no Walmart”, presente no primeiro volume da coleção “Cartas de um Terráqueo ao Planeta Brasil”, intitulado “Apoteose da Vigarice”, o pensador brasileiro cita dados da revista China Business Weekly, que indicavam que 70% dos produtos vendidos no Walmart, uma multinacional norte-americana de supermercados, eram chineses. E o Professor Olavo, que desde cedo esteve a par do que se ia dizendo nos EUA sobre a invasão dos mercados dos EUA por produtos chineses, não devia ter dúvidas de que a consequência mais visível e imediata dessa realidade foi e é a perda de milhares de vagas nas fábricas, especialmente no interior dos EUA, e a “atrofia das velhas cidades industriais como Detroit, Cleveland, Allentown, Bethlehem e Pittsburgh”.

Apesar de, no debate sobre as tarifas e sua popularidade entre os defensores da administração Trump, haver uma referência costumeira à China e à indissociabilidade entre a economia e a geopolítica (falarei disso mais profundamente noutro artigo), que, na minha opinião, Trump percebe muito bem, é preciso que o combate aos regimes totalitários na arena internacional não feche os nossos olhos (ou os olhos dos norte-americanos) às práticas desiguais de países democráticos nas relações comerciais. Bem nos recorda Guy Millière, na sua obra Aprés Trump, publicada em 2020 pela Balland, que Trump retirou os EUA de “todos os acordos comerciais assinados antes de ele tomar posse, com o fim de obter melhores condições” para o país que, em breve, voltará a governar: o North American Free Trade Agreement (NAFTA) foi renegociado e substituído pelo United States-Mexico-Canada Agreement (USMCA), e o Trans-Pacific Partnership Agreement (TPPA) deu lugar a negociações bilaterais, isto é, de país para país. O ex-presidente também exigiu à União Europeia (UE) e aos países europeus, antes da assinatura do tão proposto Trans-Atlantic Free Trade Agreement (TAFTA), que levantassem todas as barreiras protecionistas contra as empresas norte-americanas, caso quisessem continuar a ter um acesso significativo ao mercado norte-americano. Creio que não será nos próximos quatro anos que alguém conseguirá convencer Trump de que o livre comércio entre países democráticos não implica reciprocidade.

No comentário “The Art of the Tariff Deal – Another Way Trump Can Boost Our Economy”, de Richard Stern e Andrew Hale, publicado no site da Heritage Foundation em 24 de outubro de 2024, os autores clarificam que a administração Trump deve ter critérios muito rigorosos nos destinatários e nas taxas das tarifas a serem implementadas. Por um lado, as tarifas, se aplicadas de forma errática e arbitrária, podem prejudicar as famílias (norte-americanas) através do encarecimento de bens comummente consumidos pelos agregados domésticos, sem se verificar um aumento na criação de empregos. Por outro lado, se a sua aplicação for mais racional e seletiva, as tarifas podem criar uma margem de manobra económica nas relações internacionais, nomeadamente comerciais, facilitando a criação de empregos em território nacional, e dificultar o acesso aos mercados de “canibais estrangeiros”, como a China. A ameaça de aplicação de tarifas, que conhecemos durante a primeira administração Trump, segundo Stern e Hale, suprimiu “esforços europeus para impor impostos sobre o carvão e os serviços digitais destinados às indústrias dos EUA”.

O partido que nomeou Donald J. Trump como candidato presidencial duas vezes nunca viu a liberdade de comércio como um dogma, mas sim como um fenómeno que beneficia a América e o resto do mundo. Não obstante a vasta evidência empírica da responsabilidade da livre circulação de bens e serviços na elevação dos níveis de qualidade de vida em todas as partes do mundo, algumas décadas de globalização devem obrigar os nossos chefes de estado e de governo a reverem as regras do comércio global, ou, pelo menos, a prestar atenção a quem se atém a elas e a quem não se atém. A desindustrialização dos países ocidentais não pode ser aceite com um encolher de ombros.