A ilusão intelectual
Donald Trump escolheu J.D. Vance como parceiro, ou seja, seu candidato a Vice-Presidente. Vance é uma mente brilhante, que não brilhou na Convenção Republicana. Mas é possível que essa seja uma boa estratégia para sobreviver no sistema Trump em que só há espaço para uma estrela. O discurso de Trump foi mau, como de costume, mas agradou ao seus, como de costume. Foi errático, demasiado longo, num inglês básico, e mais de 20 vezes falso. Mas Trump sempre foi subestimado pela ilusão querida aos intelectuais de que mil palavras bem pensadas valem mais que uma imagem, um slogan, um insulto. Trump nunca caiu nessa ilusão.
A polarização política nos EUA está a tornar-se assassina. Trump tem aí uma pesada responsabilidade. Ele nunca condenou a violência política dos seus partidários. Veja-se o 6 de janeiro de 2021 em que uma multidão que Trump descreveu como “grandes patriotas” invadiu e vandalizou o Congresso e ameaçou matar o vice-presidente e vários parlamentares. Também é claro que Trump revelou grande coragem pessoal, a par de grande preocupação e gestão da sua imagem, depois de ter sido vítima de um atentado, criando uma foto icónica e potencialmente vencedora.
A ilusão da moderação
Temos ouvido inúmeras vezes desde a eleição de Trump, em 2016, que não devemos levar a sério a sua retórica radical, certamente ele irá moderar-se. (Diga-se, na década de 1930, foi alimentada a mesma ilusão relativamente a Hitler). Trump nunca se moderou verdadeiramente. O que o moderou alguma coisa a sua presidência entre 2017-20 foi o facto de haver ainda no seu governo muitos Republicanos moderados que ativamente bloquearam os seus excessos. Mas se Trump for reeleito, em novembro de 2024, terá uma vasta elite de jovens ambiciosos para nomear para o seu governo que construíram a sua carreira com base na adesão total ao trumpismo radical.
Um exemplo disso é o candidato a Vice-Presidente, J.D. Vance, um jovem senador de 39 anos do Ohio. Tem sido apontado como futuro líder dos Republicanos, um dos dois partidos que tem dominado a política norte-americana desde 1856. Não estou certo de ter carisma para isso. Mas é claro que se Trump quisesse moderação não o teria escolhido. Vance pode, com a sua história de vida, relatada num livro bem escrito e num bom filme (disponível na Netflix – Hillbilly Elegy), ajudar a conquistar mais votos de brancos pobres no chamado Rust Belt, o coração desindustrializado da América. Mas é um populista nacionalista não um moderado. Se moderar fosse a intenção de Trump podia ter escolhido Nikki Haley que ajudaria a conquistar mais voto feminino. Ou senador Marco Rubio da Florida que ajudaria a conquistar mais voto latino. Mas qualquer deles tinha um longo percurso político moderado por direito próprio. Vance também foi um crítico de Trump, a quem apelidou de heroína do povo, e até de um potencial Hitler que usaria o voto para chegar ao poder e destruir a democracia a partir do governo. Mas Vance deve toda a sua curta carreira política a ter renegado tudo isso. Humilhou-se publicamente para obter o apoio de Trump para conquistar o lugar de senador. Desde então Vance tem-se caracterizado por ser um dos porta-vozes mais empenhados do trumpismo. Por exemplo, tem insistido na falsidade – assim declarada por mais de 50 tribunais por todo o país – de que Joe Biden não teria vencido as eleições presidenciais de 2020. Esta mentira profundamente antidemocrática tornou-se um teste de adesão ao trumpismo.
A ilusão do aliado eterno
Os EUA, em geral, e o Ohio de Vance, em particular, têm uma longa história de isolacionismo. Em 1952 foi necessário chamar um herói de guerra, o general Eisenhower, para derrotar nas primárias Republicanas outro senador do Ohio, Robert Taft, que tinha defendido a paz com Hitler e se opunha à recente criação da NATO. Entre os principais apoiantes de Trump/Vance está Tucker Carlson, o propagandista de Putin nos EUA.
Vance deu-se ao trabalho de vir à Conferência de Segurança de Munique para repetir o número trumpista de que “não quer saber o que acontecerá à Ucrânia” só lhe interessa o coração da América. É uma opção legítima. Se eu vivesse pobremente no meio dos EUA possivelmente já me teria cansado de intervenções militares no exterior. O que torna isto pouco racional em relação à Ucrânia é que o apoio americano representa menos de 5% do total do orçamento de defesa dos EUA. Traduz-se em fortes compras à indústria militar americana. E é uma oportunidade de, sem baixas americanas, desgastar uma Rússia agressiva que declara abertamente querer acabar com a influência global dos EUA e desestabilizar a Europa. Ainda hoje 48 do total de 50 Estados dos EUA, exportam mais para a Europa do que para a China. Desde a fundação do país que, apesar da popularidade periódica do isolacionismo, os EUA estão profundamente interligados em termos de sua prosperidade económica e segurança à Europa. Apesar disso por várias vezes os norte-americanos preferiram ignorar o continente europeu mesmo que depois pagassem custos significativos por isso. Pode voltar a acontecer.
O que fazer, sem ilusões?
Os europeus não podem ter ilusões quanto a novembro de 2024. O resultado eleitoral provavelmente será apertado, como têm sido sempre o caso nos EUA nas últimas décadas. Mas neste momento as intenções de voto deixam claro que é provável que Trump vença as eleições. Nenhum presidente ganhou, com o nível de rejeição de Biden, desde Harry Truman, em 1948, e foi por uma unha negra. Biden está longe de estar em plena forma e é um problema que só vai piorar. Substituir Biden é uma jogada de alto risco. O facto de parecer cada vez mais provável que aconteça mostra o desespero eleitoral do Partido Democrático.
Devemos, na Europa, neste momento, começar a planear partindo da possibilidade real de que Trump e o trumpismo vieram para ficar. Isto significa que podemos deixar de poder contar com os EUA como principal garantia de defesa da Europa. Diga-se que algum retraimento estratégico e protecionismo nacionalista também existem entre os Democratas, embora de forma mais moderada.
Porque é que ilusão dos EUA como aliado eterno da Europa é tão tentadora? Porque nada pode substituir uma garantia de segurança da principal potência militar do Mundo, por muito que os europeus possam e devam gastar mais e melhor em defesa. A Rússia de Putin até aqui sabia que nem valia a pena pensar em atacar um país da NATO. Se a NATO estivesse em risco de derrota acabávamos com uma Terceira Guerra Mundial nuclear a que nem o Kremlin sobrevivia. Depois temos as consequências económicas negativas de uma corrida global ao protecionismo, sendo a Europa uma grande exportadora e muito dependente de importações baratas. Por fim, teremos o provável impacto na Europa de uma vaga iliberal vitoriosa nos EUA dando força a figuras como Órban ou Le Pen. Líderes muito admirados pelos seus seguidores, mas que ninguém no seu perfeito juízo apresentaria como empenhadas na coesão da UE. Ora esta coesão europeia seria fundamental para conseguir fazer face mais eficazmente a um Mundo trumpista mais incerto e perigoso. Sabemos que Trump declarou a UE um “inimigo” a abater e vai apostar em dividir para reinar na Europa, como já fazem Putin e Xi.
Neste contexto Portugal e os demais países europeus não terão alternativa em seguir o exemplo de Trump de total pragmatismo. Desde logo adotar uma postura de neutralidade na disputa pela hegemonia global entre os EUA e a China, o que não significa alinhar automaticamente com Pequim. Depois o minilateralismo será uma solução necessária, se a coesão da NATO e da UE se revelar impossível. Ou seja, tentar coligações mais pequenas e mais sólidas de grupos de países mais coesos porque partilham ameaças, interesses e valores. Portugal poderia tentar na Europa do Sul, mas também com outras potências atlânticas, nomeadamente a Grã-Bretanha, que surge como uma ilha de estabilidade neste contexto.
Em Portugal veríamos provavelmente ganhar peso a nossa versão do isolacionismo: o neutralismo face aos problemas do continente europeu. Convém, no entanto, recordar que hoje o nosso nível de interdependência económico com o resto da Europa não tem nada a ver com o passado.
Estou a ser pessimista? É verdade que o isolacionismo é de tal forma contrário aos interesses, ao poder e à influência dos EUA que pode ser que não triunfe. Mas seria um erro subestimar a capacidade dos povos e dos seus líderes para avaliarem mal os seus verdadeiros interesses. Veja-se a invasão russa da Ucrânia. Os EUA como uma grande potência podem dar-se ao luxo desses erros. Portugal tem menos margem para isso. Como potência atlântica Portugal terá de lidar com os líderes que os norte-americanos elegerem, mas não o devemos fazer com ilusões.