Quando iniciei esta crónica o seu título era “Trumpoceno”. Estava na altura convencido que a eleição de Donald Trump como 47.º presidente dos EUA seria o marco de uma nova era. Estava, na realidade, contaminado pela quase totalidade dos comentadores “avençados”. E se assim estava, escrever esta crónica teve pelo menos o mérito de confrontar a “espuma-dos-dias” do politicamente correto com o que intuía da história. Ao fazer este confronto deparei-me com três equívocos para cuja reflexão vos convido.

A eleição de Trump para o seu segundo mandato é adjetivada pelos “avençados” como um marco que, num futuro longínquo, talvez não muito distante, assinale um período em que o estudo do sedimento político terá em 05/11/2024 a data da “emergência” determinada pelo acto eleitoral. A era que dele resulta será, de acordo com os “avençados”, de tal forma disruptiva que poderá ficar conhecida por Trumpoceno. E não eram só os “avençados” que assim pensavam, muita gente de reconhecido mérito comungava desta ideia. Muitos comentadores, mesmo aqui no Observador, viram na eleição de Donald Trump um sinal da decadência da democracia e do papel do jornalismo enquanto artífice da opinião pública. Outros, como Pacheco Pereira entravam em “pânico” e referiam-se aos resultados das eleições americanas como o início de uma era de populismo e movimentos nacionalistas. À altura, a eleição de Trump, para a maioria dos “opinion makers” europeus, foi assumida como um golpe na globalização e o início de uma nova ordem internacional com o mundo dividido em quatro ou cinco áreas estanques, cada uma delas dominada por um Estado prevalente, um polo dominador, cuja hegemonia não decorrerá da cultura, da capacidade de inovação ou liderança, nem do respeito que inspirará na vizinhança, mas antes de causas tão prosaicas como a dimensão e critérios geográficos. Este mundo dos “avençados”, será um lugar renascido da derrocada da globalização e do suicídio da democracia ocidental. Na sua visão, será um mundo fragmentado em blocos herméticos e tão distópicos como os descritos por George Orwell.

O Trumpoceno que antecipam será dominado por autocracias estanques de razoável impermeabilidade cultural e relações económicas internas descritas como de “capitalismo musculado”. Ora, este modelo económico nada contém de estranho, nem a sua dependência de regimes mais ou menos autocráticos é novidade ou um salto para um desconhecido. Estes são os dois primeiros equívocos.

O modelo económico capitalista é caracterizado pela coexistência de propriedade privada, comércio livre e mobilidade de capitais. Porém, estas premissas não dão por si só garantias de sucesso económico e se deixadas sem regulação o fosso entre ricos e pobres, sejam países, sejam indivíduos, só tende a aumentar. É por isso que governos, e em particular os de países mais desfavorecidos, regulam o comércio e a mobilidade de capitais como forma de proteção da economia e populações. Na realidade, mesmo durante as épocas de maior liberdade comercial, esta nunca ocorreu sem nenhum tipo de regulação – tarifas, quotas, subsídios, etc.

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A globalização possível é uma construção híbrida. Mercados completamente abertos são apenas possíveis teoricamente. Na prática estão sempre limitados por políticas económicas, interesses estratégicos e realidades sociais. O comércio globalizado e livre é um construto teórico e a regra é a imposição de regras e limites na procura do equilíbrio entre os benefícios da integração e a necessidade de proteger economias locais, trabalhadores e recursos naturais.

A ideia de fronteiras controladas como condição importante para o desenvolvimento das economias, especialmente das não desenvolvidas já é uma posição conhecida pela ciência económica pelo menos desde 1841, quando o economista alemão Friedrich List no seu livro “Sistema Nacional de Economia Política” referia que trocas comerciais livres, i.e., sem fronteiras, beneficiam sempre o parceiro mais forte, ou aquele que num emaranhado de leis e regulação consegue camuflar a proteção à sua economia. Este é assim o primeiro equívoco. Nem a globalização de que “saímos” foi isenta de controlo ou regulação, nem um modelo económico fortemente protegido dentro de uma geografia ou área de influência tem algo de novo. Na mesma linha, um sistema político mais favorável à uma forte regulação económica não tem forçosamente de ser uma autocracia. E este é o segundo equívoco.

Os “avençados” antecipam o Trumpoceno como uma autocracia ou uma oportunidade para que um governo com estas características se instale – afirmação que as últimas semanas parece desmentir. Para os receosos da evolução, a leitura que fazem do “Trumpoceno” é que este será um período com a autocracia como regime dominante, um período em que a bolha democrática que brilhou no pós IIGM acabará por se esvaziar. Será, para eles, o fim do “Goldilocks” de democracia em que ainda podem viver, pelo menos, até 20 de janeiro de 2025.

Estas deduções causam-me desconforto por duas ordens de razão. A primeira resulta do facto de estar inquinada pela habitual tentação de confundir populismo com autocracia e em particular com as suas formas de extrema-direita. Os populistas, como todos quantos assumem o poder podem em algum momento do seu exercício ser tentados a “suspender” a democracia como forma de cumprirem a sua visão. Tentações, tê-las-ão eventualmente todos os políticos, contudo, apenas uma pequena parte deles tentará esta via, e destes, seguramente uma pequena minoria o conseguirá. Não, a evolução para autocracia não é automática! E, se me permitem, desde a eleição de Trump em 5/11 o caminho parece ir em sentido completamente diferente.

O segundo aspeto resulta do facto de se reconhecer a democracia como o melhor dos regimes políticos. Há seguramente muitos argumentos que relacionam democracia com felicidade e múltiplos autores argumentam nesse sentido. Contudo, há situações em que os regimes autocráticos conseguem de alguma forma ser mais eficazes na prossecução do bem-estar.

Autores como Samuel Huntington sugerem que alguns regimes autoritários podem em determinadas circunstâncias ser mais eficazes na implementação de ordem, estabilidade e segurança. Amartya Sen, com base na experiência indiana, sugere que por vezes os regimes autocráticos são mais eficazes na economia, criando as condições para um crescimento mais rápido e robusto e por isso de maior felicidade para a população.

A China é um exemplo onde ninguém imagina que um regime democrático conseguisse ser mais eficaz a tirar milhões de pessoas da pobreza e gerar satisfação pela via da melhoria das condições de vida.

Hannah Arendt, com a sua autoridade, sugere que em determinadas circunstâncias a liberdade excessiva pode ser opressora para algumas pessoas, levando-as a procurar refúgio em regimes com regras claras e papéis sociais bem definidos.

Ninguém questiona a importância do consulado de Lee Kuan Yew, ex-primeiro-ministro de Singapura, que demonstrou como pode um regime autoritário, sem o impacto de ciclos eleitorais curtos, ser mais eficaz na implementação de políticas públicas de longo prazo.

Contabilizada o tempo histórico, o mundo ao longo de 8000 anos de registo, na sua quase totalidade, foi governado por regimes autocráticos com variantes dependentes das circunstâncias. Calculado o período em que a humanidade confiou primariamente nas instituições como forma de governação, a sua representação na linha do tempo corresponde a menos de 1,5% da historia civilizacional.

O terceiro equívoco em que os  “avençados” habitualmente caem é o de verem na eleição de Trump um incentivo para o isolacionismo americano. O “Trumpoceno” pelo que se pode antever tenderá a favorecer o isolacionismo, mas esta postura não tem novidade e, contabilizada na “timeline”, é claramente a postura prevalente.

Na sua eleição de 2016, Trump, usou o termo “America First” como forma de se posicionar contra o “establishment” e ao lado dos eleitores descontentes com a globalização. Porém, a determinação em colocar os interesses dos EUA em primeiro lugar, não é uma ideia fora-da-caixa, sendo antes uma característica recorrente na política americana. Seja num contexto de isolacionismo, protecionismo ou nacionalismo, vários foram os líderes americanos que adotaram esta abordagem em momentos em que a Nação procurava proteger a soberania e os recursos nacionais de influências externas.

Desde a sua independência em 1776, e os Estados Unidos da América assumiram essa designação como forma de afirmarem a sua independência e de se diferenciarem das outras colónias britânicas, data desde a qual o povo americano, pela voz dos seus lideres políticos, não mais deixou que outros países interviessem no seu território ou junto às suas fronteiras. De igual forma recusaram sistematicamente tomar posição ou partido nas guerras que se desencadearam entre a data da sua independência e 1914. Neste período, ocorreram 26 guerras fora do continente americano e os EUA apenas participaram numa delas – Revolta dos Boxers  China (1899–1901). Nesse mesmo período, ocorreram 10 conflitos no continente americano e os EUA intervieram em cinco deles, por sinal, os de maior relevo – Guerra da Independência dos EUA (1776–1783); Guerra contra embargo Britânico à França (1812–1815); Revolução do Texas (1836); Guerra Mexicano-Americana (1846–1848); Guerra Hispano-Americana (1898).

Durante o século XIX, os EUA assumiram uma política externa que designaram como “Manifest Destiny” e com a qual pretenderam legitimar a sua expansão territorial no continente americano e sublinhar a superioridade dos interesses americanos no continente americano (200 anos depois vemos os Russos com a mesma postura!). Esta política teve ainda desenvolvimentos com a Doutrina Monroe (1823), um princípio pelo qual os EUA declaravam que não tolerariam interferências europeias no “seu hemisfério”. Simultaneamente comprometiam-se a não se envolver em assuntos europeus. Com esta posição, os americanos priorizavam os seus interesses e “protegiam” o continente americano de influências externas.

Mesmo durante a IGM houve muita resistência interna à inclusão dos EUA na contenda. Apenas após o afundamento do paquete Lusitânia e a instigação alemã para que o México entrasse alinhado com as potências centrais e o fizesse como forma de recuperar os territórios do Texas, Novo México e Arizona que os americanos sentiram que a sua participação seria inevitável.

Após a IGM os americanos recuperam a sua resistência ao envolvimento internacional e apesar de o presidente Woodrow Wilson ter defendido a criação da Liga das Nações, o Senado americano rejeitou a adesão refletindo a posição isolacionista de “America First”, assim designada pela primeira vez. Durante a década de 1930 e início dos anos 1940, antes da entrada dos EUA na IIGM o movimento “America First” era a postura proeminente e personalidades como Charles Lindbergh, acreditavam que os EUA deveriam evitar o seu envolvimento nos conflitos europeus e centrar o seu empenho na defesa doméstica. Não tivesse ocorrido o ataque a Pearl Harbor em 1941, e a posição “America First” não ficaria minoritária e os EUA não entrariam na IIGM.

Durante o período da guerra fria os americanos continuaram a interferir nos assuntos europeus, bem como em muitos outros lugares do mundo como forma de defender o modo de vida americano da ameaça comunista, uma atitude protagonizada pela Doutrina Truman. Em 09 de novembro de 1989, com a queda do muro de Berlim, caíram todas as justificações para a guerra fria e o movimento “America First” acabou por reocupar o seu espaço natural. Contabilizadas as datas, os EUA ao longo dos seus 248 anos de independência intervieram fora do continente americano durante 85 anos, ou seja, um terço da sua existência. Como europeus, podemos não gostar desta posição, mas não a devemos estranhar.

Para além destes três equívocos, há ainda um paradoxo que quero partilhar.

A vitória de Donald Trump tem seguramente muitas causas e tanto “áuspices” como “avençados” procuram para o “Trumpoceno” justificações numa introspeção ao jeito  – onde falhamos? Como foi possível eleger um “mentiroso”, alguém que distorce despudoradamente a realidade em seu proveito? Como foi possível que um ignorante, um misógino, um racista, um xenófobo ganhasse as eleições, vencendo inclusivamente junto de grupos étnicos que justamente é acusado de discriminar? Como foi possível que a democracia falhasse, interrogam-se os “avençados”, procurando respostas entre a incompetência da sua opositora, a economia, a inflação, o populismo, os Media, os milhões de Elon Musk, o conservadorismo americano e um sistema eleitoral que impede que Estados mais populosos dominem a política. Olham para tudo isto com perplexidade e lá se aproximam mais da realidade quando reconhecem, timidamente, que a vitória de Trump foi a derrota do mundo woke, um mundo contaminado pelas ideologias de género, a teoria da raça  e o conceito de Interseccionalidade.

Os que assim pensam, aproximam-se da realidade mas não estão a ver o paradoxo do “Trumpoceno”.

Quando as elites de “comentadores avençados”, inicialmente ridicularizaram a sua recandidatura, posteriormente mostraram-se “indignados” com a possibilidade de um mentiroso e “indiciado” de crimes públicos poder se eleito, e quando finalmente, em 05/11/2024 entraram em “choque”, o que não entenderam é que há razões para a sua eleição que são destituídas de racionalidade. Não é um exercício útil ou sequer apetitoso procurar uma lógica para a eleição de Trump. Uma eleição, e esta em particular, não resulta dos argumentos racionais apensos. Podem ser importantes, mas não são determinantes. A grande maioria dos que votam não o fazem com base na “razão”. E este argumento é válido em ambas as direções. Nem a maioria dos que votam são permeáveis à racionalidade, nem os “avençados” conseguem reconhecer que a sua própria indignação resulta do “zeitgeist” e nicho que os alimenta. Trump foi eleito porque o sentimento que o elegeu era maioritário e porque as emoções são pouco permeáveis a argumentos racionais.

O movimento social subjacente à eleição de Trump, é essencialmente populista, de direita radical um “sentimento” retratado em “Lamento de uma América em Ruínas” de JD Vance. Uma América com as consequências de uma desindustrialização agravadas pela deriva neoliberal e o “boost” da economia financeira como forma de rentabilizar o capital. Um sentimento de perda agravado ainda por políticas sociais que desincentivavam a iniciativa individual e, mais tarde, pela deriva das políticas woke. Tudo somado resultou num processo que nunca resolveu o problema dos desfavorecidos, tendo apenas engrossado as suas hostes. O reconhecimento destas iniquidades por aqueles que se esforçaram em escapar à armadilha da pobreza e o fizeram por via da formação universitária ou nas forças armadas, são os que tentaram contrariar este decaimento. Foram estes, que alinhados como o movimento MAGA se dispuseram a apoiar quem lhes alimentasse a esperança. A recetividade emocional estava criada e quem quer que emergisse capacitado para a liderar teria inequivocamente o seu apoio.

A figura que sobressaiu resultou de uma imagem criada e alimentada por redes sociais, “Reality Shows” e concursos, e este é o paradoxo.

Trump é o resultado da descrença do americano num mundo governado por conceitos de igualdade e equidade em detrimento da liberdade. Este era o estado de espírito da maioria dos americanos, um grupo que apenas aguardava por quem lhes desse consistência e hipótese de saírem vitoriosos. E Trump encorpou esse objetivo de combate ao mundo igualitário, de equidade e woke, que o setor democrata nunca compreendeu e não conseguiu abandonar. Agora fê-lo, curiosamente e aqui o paradoxo, seguindo princípios woke, seja através do espaço que ocupou nos Média, seja no mundo performativo e pós-moderno do “Tudo a toda a Hora e em Todo o Lado”. Um mundo de vertigem cuja única vítima é a verdade. Este caldo cultural de que Donald Trump se serviu é um lugar pós-moderno criado por Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari e Jaques Derrida. É um mundo onde a verdade é subjetiva e o seu valor depende do fim a que se destina. Este universo Trump tem características semelhantes às que reconhecemos nos movimentos woke, não deixando de ser estranho ter sido uma criação woke a criar as condições para a aniquilação das outras manifestações que impregnam o “wokismo” como a teoria critica da raça, a ideologia de género e o interseccionalismo.

Trump venceu porque conseguiu corporizar um movimento de descontentes com a política igualitária, de equidade e woke protagonizada por democratas e Kamala Harris. Estes nunca conseguiram perceber que nem a equidade nem a igualdade têm bases biológicas e que, quando as pessoas sentem as suas liberdades ameaçadas, assumem posições que para muitos são incompreensíveis. É por isso que a esquerda e o mundo do trabalho não são woke, é por isso que toda essa mole de descontentes e revoltados lá como cá tenderá a votar em quem lhe incuta segurança e garanta que o seu modo de vida não é posto em causa por uma utopia de igualdade, ou pela distopia da discriminação positiva dos grupos minoritários e excluídos.

Para os distraídos, para quem se fixar neste “wishful thinking”, e persistir nestes equívocos, vai continuar a insistir que entramos num “Trumpoceno” e jamais vai entender que o que aconteceu a 05/11/2024 foi apenas, e eventualmente, o início do fim do “Wokeoceno”.