Temos vindo a assistir nos últimos meses, ao escalar das tensões entre Kiev e Moscovo como não acontecia há alguns anos. Sabendo-se que ambos os países se envolvem numa guerra híbrida na região de Donbass, as tensões diplomáticas têm sido, nos últimos anos, relativamente estáveis, mesmo num cenário de volatilidade. Este escalar – com cada vez mais tanques e armamento russo a estacionar-se junto à fronteira com a Ucrânia – deve-se em grande parte a um processo que está em curso desde o rescaldo da anexação da Crimeia pelo regime russo: o processo de integração da Ucrânia na NATO.
Como é sobejamente sabido, a NATO é nada mais que uma aliança militar, fundada e mantida para servir de força de oposição e contrabalanço ao poder de Moscovo, muito embora, hoje, o seu foco seja cada vez maior no eixo do Pacto de Xangai.
A Rússia está perfeitamente ciente de que a NATO tem como primordial função garrotear o poder do Kremlin de modo a manter a maior potência nuclear deste planeta numa posição de inferioridade militar e económica. Nesse sentido, é lógico que Moscovo meça forças no âmbito diplomático para aliviar este garrote que a envolve numa cortina de bases militares inimigas. Assim, do ponto de vista geoestratégico, impedir que mais um país com fronteiras directas com a Rússia entre na NATO faz todo o sentido.
Nos anos 90 e 2000, após a queda da URSS em 1991, a Europa ocidental e os EUA aproveitaram a débil situação económica e anímica da Rússia para estender a esfera de influência ocidental aos países de leste, incorporando-os na UE e na NATO, algo que foi visto por parte de Moscovo como uma das maiores perdas daquilo que consideram “espaço vital russo” dos últimos séculos, e é precisamente esse sentimento que devemos ter em atenção do nosso lado.
A Rússia deixou de ser uma superpotência, mas não deixou de ser uma forte potência regional – numa região muito vasta – tal como não deixou de ter um dos exércitos mais pujantes do mundo, nem o maior arsenal nuclear do mundo, ou seja, não é propriamente uma peça irrelevante do tabuleiro de xadrez mundial. E se há sentimento que pode despertar no Kremlin as atitudes e decisões mais cínicas e imprevisíveis é o medo.
O primeiro maior medo da Rússia, legitimamente, diga-se, é o de ser invadida pelo ocidente, como já aconteceu em diversas ocasiões, sendo as duas mais célebres, a tentativa de invasão por Napoleão em 1812, e por Hitler em 1942, na célebre Operação Barbarossa. Ambas terminaram atoladas no lameiro e nos atrozes nevões do impiedoso inverno russo, todavia, ambas estiveram a muito pouco de conquistar Moscovo, o que seria o fim. Este medo tem, ainda hoje, um forte impacto cultural na sociedade russa e na forma como esta olha para o exterior. Esse medo vive no seio de cada família russa, assim como nos corredores do Kremlin. Para o homem comum russo, a fronteira e os seus espaços vitais de defesa são para defender com a própria vida, se necessário for. Daí a obsessão do poder central com certas fronteiras naturais, como as montanhas do Cáucaso, por exemplo, que sempre foram uma muralha natural contra os Persas e os Otomanos, barreiras naturais essas que não existem para com a Europa. Tudo o que esteja na linha entre S. Petersburgo e Rostov do Don está completamente desprotegido.
O segundo grande medo russo, é o da desintegração parcial ou total do próprio país. A Rússia é dos países mais multi-culturais, multi-linguísticos e multi-étnicos do mundo, é um país que é composto por russos, por chechenos, por tártaros, avares, iaks, azeris, bashkirs, kalmyks, buryats, ucranianos, koryaks, chukchis, nivkhis, cossacos, entre algumas outras etnias, muitas delas, com as suas próprias línguas e dialectos, com as suas próprias culturas e costumes ou, algumas, com as suas próprias religiões e seitas. Esta multiculturalidade, juntando a pobreza crónica em que vive grande parte dos cidadãos deste país e uma escolaridade baixíssima ou inexistente nas regiões mais remotas (que são quase todas), resulta num caldo que torna a Rússia num país altamente difícil de governar, onde sentimentos separatistas irrompem com alguma facilidade, como foi o caso da guerra da Chechénia em 1994, sendo apenas possível manter aqueles povos agregados pela via da força e do autoritarismo de Estado. Moscovo sabe perfeitamente que a democratização resultaria numa desintegração total da Rússia como a conhecemos.
Posto isto, podemos colocar a seguinte questão. Quais seriam os danos causados pela entrada da Ucrânia na NATO, ou mesmo até, na União Europeia?
Para o poder central russo, só imaginar sequer esse cenário se torna aterrador. A Ucrânia, para a Rússia, é não só uma gigante “barreira” anti invasões – foi aliás, um território fundamental para desacelerar a progressão do exército nazi na Operação Barbarossa – como é também a principal “autoestrada” de oleodutos e gasodutos russos, passando pela Ucrânia cinco linhas de pipelines que alimentam a Europa central e que são uma das principais fontes de rendimento para o PIB russo. Do ponto de vista geo-estratégico, perder esses gasodutos para o ocidente é aumentar o aperto do garrote ocidental sobre Moscovo.
Mas há algo mais por detrás daquilo que representa a Ucrânia para os russos. Ucrânia, Rússia e Bielorússia partilham todos a mesma fonte civilizacional comum, todas elas descendem do mesmo ancestral cultural, o Rus de Kiev, um país que existiu entre o sec. IX e o sec. XIII. Esta ancestral nação eslava é considerada por estes três países como o berço da sua cultura actual, sendo que, a capital e a cidade mais icónica desta nação quase mitológica para os russos é, precisamente, Kiev, a actual capital da Ucrânia. E, por isso mesmo, para a Rússia, só de imaginar ver a sua cidade de berço ancestral ser dominada pelo bloco ocidental é um cenário aterrador, pois será sentido como que um punhal a ser cravado na história que consubstancia toda a sua existência, e aqui entra um medo, o medo do sentimento de desagregação, porque quando se perde domínio sobre parte da sua história ancestral, todo um povo reflecte acerca da seu próprio ser, podendo entrar em crise existencial, questionando todos os porquês e dogmas existentes, e ambicionando todo o tipo de novos rumos e aventuras. É tudo o que Moscovo não deseja, ver o seu país desmembrar-se.
Kiev é para o povo russo, algo semelhante ao que Atenas, Roma e Paris são para nós ocidentais, Atenas como o berço da civilização e dos nossos valores universalistas, Roma como o berço da grandiosidade e Paris como o berço da liberdade, cidades que nunca toleraríamos ver dominadas por um bloco antagónico, que levariam o mundo ocidental a questionar-se a si próprio e ao sentido da sua própria existência, o que resultaria em graves tumultos internos. Tumultos que provavelmente aconteceriam numa Rússia sem Kiev, tumultos internos esses que muito provavelmente seriam contrabalançados com tumultos externos, para apaziguar as hostes internas, porque por mais que nós ocidentais vivamos nesta aura primeiro-mundista, onde, inocente e erradamente, percepcionamos que a guerra é uma realidade longínqua, para uma Rússia em modo de defesa, a guerra é sempre uma opção, ou, melhor dizendo, a opção.
É precisamente por todas estas razões que integrar a Ucrânia na Aliança Atlântica é nada mais que um erro histórico. Tal decisão poderá danificar gravemente as relações diplomáticas entre Europa e Rússia, o que não é, de todo, do nosso interesse, tal como pode gerar uma imprevisível instabilidade interna na própria Rússia, que também não é conveniente. Ao ter um vizinho em tumulto é fácil sobrarem danos colaterais substanciais – não nos poderemos nunca esquecer que estamos imediatamente aqui ao lado.
As aspirações democráticas e de liberdade dos ucranianos são absolutamente legítimas e deverão, porventura, ser encorajadas e apoiadas. O fatídico massacre da praça Maidan em 2014 em Kiev, não deverá, nunca, ser esquecido. A luta dos ucranianos por um país mais justo, mais igual e livre da agressão de Moscovo não pode ser desconsiderada nem abandonada. É obrigação moral da Europa ocidental servir de amparo aos povos que lutam por derrubar os muros do despotismo e da opressão. Todavia, o caminho não passa por albergar a Ucrânia numa aliança militar “de jure”, mas sim por manter a Ucrânia como uma zona de exclusão militar e como região de charneira entre Rússia e Europa ocidental, capaz económica e militarmente de defender os seus interesses e de se governar independente de ambos os blocos, tal como acontece com a Turquia, na qualidade de charneira entre a Europa e o Médio Oriente.
É-me difícil – num prisma de análise realista – imaginar que a Ucrânia fará, em breve, parte da NATO, por todas as razões enunciadas acima, entre algumas outras, não obstante ser perfeitamente possível por via do indissociável condimento chamado “factor humano”, que, como a História regularmente comprova, consegue virar qualquer cenário realista de pantanas numa questão de dias. De qualquer modo, não prevejo que a Ucrânia assine a sua entrada na aliança e, que, tudo isto mais não seja que uma jogada do ocidente para que a cartada da entrada da Ucrânia, mais não seja que uma moeda de troca para uma futura entrada da Finlândia e/ou da Suécia, que (embora Moscovo também se manifeste veementemente contra) seriam dois países que fariam mais sentido numa aliança militar com as características da NATO, e que lesariam menos as relações sempre titubeantes entre Rússia e Ocidente.
Tocar no ponto “Ucrânia”, para Moscovo será sempre motivo de alerta e de colocar de prontidão o seu modo de defesa, o que para nós, deste lado, nunca deverá ser ponderado de ânimo leve, porque nunca é demais relembrar que, para uma Rússia em modo de defesa, a guerra é sempre uma opção, ou, melhor dizendo, a opção.