1 A guerra entre a Rússia e a Ucrânia, em que estamos, direta ou indiretamente, envolvidos é uma consequência próxima da invasão e anexação da Crimeia, em 2014, e daquilo que se passou, desde então, na Ucrânia, em particular nas regiões de Donetsk e Lugansk. Essa invasão teve um impacto demográfico significativo com migrações internas destas para outras regiões da Ucrânia de modo que aumentou consideravelmente a proporção da população russa e pró-russa. Nas recentes eleições para o parlamento russo (Duma), os residentes dessas regiões ucranianas com passaporte russo puderam até mesmo votar (eletronicamente ou deslocando-se à Rússia) antecipando a decisão atual de Putin de reconhecer essas auto-proclamadas Repúblicas. Assim, justificando a sua narrativa de que elas necessitariam de ajuda militar, “legitimaram” a entrada russa em território da Ucrânia.
Putin é o inequívoco responsável por esta guerra, e por toda a destruição e sofrimento que já provocou e ainda irá provocar, sobretudo com a previsível tomada de Kiev nas próximas semanas, após aquela que será certamente a batalha mais dura. O cerco à cidade está neste momento a ser montado. Putin, que sabe que quantas mais vidas ceifar mais enfraquecido fica na opinião pública mundial, irá permitir um corredor humanitário em Kiev (como agora se tenta fazer em Mariupol) para que os que queiram saiam da cidade antes do assalto final. Se esta guerra é, na ótica russa, também uma resposta à humilhação do colapso da União Soviética e da posterior adesão à NATO de vários países que antes pertenciam ao Pacto de Varsóvia, dificilmente se consegue imaginar que Kiev não seja tomada a qualquer preço, com muita destruição e muitas mortes. Antes disso não creio que haja lugar a conversações sérias entre russos e ucranianos. Depois disso, sim, mas é uma incógnita como decorrerão, e o que se seguirá.
2 A questão de saber se esta guerra poderia ter sido evitada é pertinente, mesmo que não possamos ter nenhum contrafactual. É simultaneamente útil pois haverá um fim para a guerra e os problemas, que existiam à partida, mantêm-se embora de forma agravada, à chegada. É importante responder a esta questão do ponto de vista Europeu, não do ponto de vista dos EUA ou da NATO, que não é coincidente. Para isso convém perceber os interesses e anseios de ambas as partes (ucranianos e russos), nomeadamente sobre dois aspetos fundamentais – a pertença ou não da Ucrânia à NATO e o estatuto de Donetsk e Lugansk.
Apenas cinco meses depois de ser eleito Presidente em 2019, Zelenskyy recebia em Kiev o Secretário-Geral da NATO Stoltenberg de quem recebeu rasgados elogios. Esta aproximação da Ucrânia à NATO foi um erro, e não parece servir os interesses quer do povo ucraniano quer dos europeus. Do mesmo modo é um erro a crítica de Zellenskyy à NATO por esta não declarar o espaço aéreo da Ucrânia uma no fly zone. Percebo a sua situação desesperada e admiro a sua coragem, mas é óbvio que se a NATO o fizesse de forma credível, como ele deseja, isso significaria uma escalada militar que acabaria decerto numa III Guerra Mundial.
Será que a Ucrânia e a Europa ficariam mais seguras caso essa adesão se efetivasse? Certamente que não. Concordar que Kennedy não tenha aceitado que os mísseis soviéticos estacionassem em Cuba e aceitar que a NATO possa instalar os seus na Ucrânia é um duplo padrão moral, dificilmente sustentável. A Europa deveria ter uma posição clara sobre esta questão e defender a neutralidade militar estratégica da Ucrânia, à semelhança do que ainda hoje acontece com a Suécia e a Finlândia. Um efeito indesejado desta guerra é que estes países ponderam agora a adesão à NATO. Porém, não o farão antes das próximas eleições, onde a questão será decerto um tópico relevante.
No que toca às regiões de Donetsk e Lubansk, a forma de compaginar a unidade territorial da Ucrânia com uma maior autonomia dessas regiões passa necessariamente por uma revisão constitucional que, não estando prevista nos acordos de Minsk I, foi acrescentada e está no acordo de Minsk II, mas nunca foi implementada. Pode concluir-se que a comissão trilateral (Ucrânia, Rússia e OSCE) responsável pela monitorização desses acordos falhou e que este não será, por isso, o melhor modelo para acordos ou tratados no final desta guerra.
Será que, com a rejeição da pretensão de adesão à NATO pela Ucrânia e a aceitação de uma estrutura federal de governo, comum a grande parte dos países ocidentais, ter-se-ia evitado a guerra? Nunca o saberemos. De qualquer modo, Samuel Charap num interessante artigo no POLITICO em Novembro passado, argumentava que se os EUA pressionassem a Ucrânia a cumprir Minsk II, isso colocaria o ónus em Putin para reverter a escalada da guerra e a ter de voltar à mesa das negociações. Agora será preciso ir mais além. De qualquer modo, estes dois tópicos estarão na mesa das negociações finda a guerra.
A invasão russa da Ucrânia teve o mérito de unir a totalidade dos países democráticos na condenação dessa agressão. Estamos, porém, num impasse. A Rússia, por mais poderio militar que tenha, sabe que pode derrotar, mas não ocupar a Ucrânia, nem instalar um governante fantoche. As sanções já estão a ter efeitos, mas as relações com a China amortecem os seus efeitos. É necessário voltar à mesa das negociações e aceitar que tem de haver cedências de ambas as partes. Era bom que fosse a Europa, e não Israel ou outro país, a mediar essas conversações, com Angela Merkel, respeitada por Putin e Zelenskyy, como enviada especial de Ursula Von der Leyen. Afinal de contas, trata-se de uma guerra na Europa.