Estava na fila do supermercado quando notei que, à minha frente, um sujeito me olhava com particular atenção. Coloquei várias hipóteses. Era um admirador destas crónicas. Era um alvo destas crónicas. Era um amigo. Era um inimigo. Era uma tentativa de engate. De repente, ocorreu-me que o pormenor de ambos termos uma máscara a ocultar metade da tromba tornava as quatro primeiras hipóteses improváveis, e que a circunstância de eu ter companhia feminina tornava a quinta hipótese um bocadinho patética. Enfim, o sujeito falou: “Vocês não estão a cumprir a distância de segurança obrigatória”. Cito literalmente. Ele disse: “Vocês não estão a cumprir a distância de segurança obrigatória”.
Por um instante, seguro de que ninguém diria tamanha palermice, achei que se tratava mesmo de um conhecido, que me reconhecera apesar da máscara e decidira meter-se comigo. Na dúvida, e a sorrir por detrás do farrapo, eu disse: “Diga?” E ele, acreditem se quiserem, repetiu a frase, exactamente como da primeira vez. Só então percebi que o sujeito falava a sério. Notem que a criaturinha, a rondar os 30 anos, dispunha de espaço suficiente para dar um passo e garantir a mítica “distância de segurança obrigatória”. Em lugar disso, preferiu não sair do sítio, voltar-se para trás e, sob a máscara que protege do vírus mas não protege dos abismos da estupidez, ensaiar aquela exibição de zelo.
A pessoa que me acompanhava interrompeu-o secamente: “Pedimos desculpa”, e puxou-me para os domínios da “segurança obrigatória”. Eu, confesso sem orgulho, fiquei com vontade de demolir a segurança do sujeito com um bastão de basebol. Em alternativa, elevei a voz e acrescentei: “Desculpa, não: perdão. Mil perdões.” Entretanto, decerto satisfeito pela oportunidade de educar o semelhante, o sujeito já estava de costas. Durante dois ou três minutos, até pagar as vitualhas e sair dali, ouviu-me dizer o que penso sobre os infelizes que engolem as patranhas que o governo e os telejornais lhes enfiam pela goela abaixo. Não voltou a falar ou a olhar-me. No final, senti-me relativamente aliviado. Sobretudo, sentia-me surpreendido. Em parte, por confirmar que a idiotia dos outros não termina onde começa a nossa dignidade. E também por experimentar enfim o tipo de intolerância que, desde o início desta histeria colectiva, não testemunhara directamente.
Ao longo destes 14 meses, fui um privilegiado que apenas aturou à distância os maluquinhos da pandemia. Excepto por via da internet, nunca ninguém me maçou por não usar máscara na rua, não despejar gosma nas mãos à entrada das lojas, não conceder ao vírus a importância cabalística que o vírus claramente não possui. A certa altura, quase me convenci de que os famosos “covideiros” existiam unicamente nas “redes sociais” e nas “reportagens” televisivas, ou seja, que não existiam no mundo dos adultos. O mérito do sujeito do supermercado consistiu em provar-me que os “covideiros” são reais e andam à solta. É uma sensação extraordinária. E assustadora.
O episódio passou-se há dias, numa altura em que, ao contrário do que previam os “especialistas”, o “desconfinamento” gradual coincidiu com uma descida gradual dos infectados, dos internamentos e dos mortos por Covid. Exactamente o que sucedeu há um ano. E se Maio de 2020 não chegou, Abril de 2021 deveria chegar e sobrar para implodir o mito de que o vírus depende de pessoas livres para se propagar e precisa da clausura de lacaios para se combater. Não chegou nem sobrou. As “autoridades” continuam a decidir, e a ameaçar, e a proibir, e a multar fundamentadas nesse mito. Esta semana, as intervenções de Costa & Marcelo voltaram a ser duas violentas ofensas à inteligência alheia: os portugueses que se portaram bem merecem, por enquanto, um pedacito de liberdade; aos restantes, o castigo. Talvez por gozo íntimo, o prof. Marcelo repetiu a ladainha das “próximas semanas”, essenciais para “ganhar o Verão” ou lá o que é. Não há muitos romances distópicos com personagens tão arrogantes.
A explicação benigna, ou menos maligna, é que em matéria de Covid as “autoridades” falharam vergonhosamente, na saúde, na economia, na justiça, na protecção dos velhos e doentes, no respeito que devem aos incautos cujos impostos os sustentam. E, em larga medida, falharam porque sempre responderam ao problema com primitiva brutalidade, e a lamentável convicção de que a responsabilidade deles desaparece em relação directa à detenção da população: nós enfiamo-nos em casa e eles, invariavelmente em passeio, lavam as mãos, ou fingem encharcá-las em álcool-gel. É a natureza dessa gente, que não se distingue pelo currículo democrático. O que distingue os prepotentes é o seguinte: não admitem o erro – se é que, no contexto vigente, é erro e não projecto.
Já o que distingue a maioria das vítimas da prepotência é a submissão. Uma coisa é políticos pouco éticos ignorarem a evidência e, perante a falta de nexo entre a frequência de esplanadas e a evolução dos contágios, teimarem em lidar com a Covid à conta de prisões domiciliárias. Coisa diferente é a quantidade de cidadãos que, após tantas fraudes, se mantêm obedientes e entrincheirados nessa guerra à realidade. Hoje sei que o sujeito do supermercado é um mero exemplo da loucura que por aí vai: ainda há imensos sujeitos do supermercado, e fora dele. O que não sei é se enlouqueceram com medo da Covid ou se se fazem de malucos por amor ao poder que a Covid lhes dá. Em qualquer dos casos, o sítio é mal frequentado. Apetece ficar em casa.
Nota: nem de propósito, estarei uma semana de férias. Regresso a 15 de Maio.