O Bloco de Esquerda goza de uma surpreendente condescendência em Portugal. Catarina Martins pode dizer as maiores barbaridades, o partido pode apresentar os projectos de lei mais disparatados, Marisa Matias pode elevar o tom de voz, que tudo passa com um simples encolher de ombros. Na verdade nenhum partido é tão pouco escrutinado em Portugal como o Bloco. E, ao mesmo tempo, nenhum outro é tão opaco na sua forma de funcionamento e nas suas regras internas – nem o PCP.
Tomemos um exemplo recente. Este domingo, durante um encontro sugestivamente intitulado “Inconformação 2016”, Catarina Martins proclamou que o trabalho voluntário “é uma treta”. Mais: acrescentou que “se é trabalho, tem que ter contrato”, pelo que só pode existir “quando houver pleno emprego”.
Tenho dificuldade em imaginar uma declaração que revele um maior desconhecimento da realidade e, sobretudo, de compreensão do que é o voluntariado. Catarina Martins nunca deve ter contactado com as inúmeras organizações que, na sociedade civil, prestam serviços à comunidade com base no trabalho voluntário. Instituições de solidariedade social. Bombeiros. Serviços comunitários. Clubes, associações culturais e recreativas, grupos amadores. Muitos dos que se voluntariam para ajudar em múltiplas frentes da nossa vida colectiva fazem-no nas horas livres depois de saírem dos seus empregos. Mas muitos outros fazem-no para dar sentido à sua vida quando já se reformaram ou quando estão desempregados. Leram bem: quando estão desempregados. E ainda bem que assim é.
O trabalho voluntário não substitui um emprego, mas conheço casos, muitos casos, em que o trabalho voluntário ajudou quem passou pela dura situação de desemprego a sentir-se “entre empregos” em vez de se sentir atirado para as margens da sociedade. A sentir-se vivos e úteis e não sozinhos e ociosos.
Mais: se os milhares de associações que, em Portugal, prestam serviços inestimáveis tivessem de transformar em contratos as horas de dedicação voluntária de que beneficiam, a maior parte deixaria de existir. Perderiam as populações que ajudam e apoiam, perderiam todos os que nelas encontram uma forma de se realizar pessoal e humanamente.
Dizer que todo este mundo do trabalho voluntário “é uma treta” começa por ser insultuoso para com toda uma rede de instituições que fez, faz e fará muito mais pelo país, e pelos seus pobres, pelos seus doentes, pelos que nele sofrem, do que alguma vez fez ou fará o Bloco de Esquerda. Mas é mais do que isso, pelo que revela sobre a forma de pensar dos bloquistas, e de Catarina Martins em particular: naquelas cabeças só cabem assalariados e empregadores, e o ideal seria mesmo que só houvesse um empregador, o Estado. Aquelas cabeças, apesar de todo o verniz pós-moderno com que se disfarçam, continuam a carburar no registo do “socialismo real”, o daqueles países onde havia de facto “pleno emprego” – e também pobreza generalizada (excepto para a oligarquia dirigente). E garanto-vos que não exagero, pois só alguém com a cabeça cheia de teias de aranha pode referir-se ao trabalho voluntário como sendo “uma treta”.
Poderia encontrar muito mais exemplos de desconchavos semelhantes de Catarina Martins (sendo que um rol deles pode ser encontrado num texto do esquerda.net chamado “6 razões para acabar de vez com os exames do básico” onde a líder bloquista defende, por exemplo, que preferia “ser operada por um cirurgião que em vez de testado na escola tenha sido feliz na escola”), mas o importante é tentar perceber o porquê da condescendência para com o Bloco.
Há muitas razões, e não pretendo esgotá-las neste artigo, antes aproveitar outros exemplos recentes para deixar algumas pistas.
Começo por isso por outro dislate recente, a ideia peregrina de que se deve mudar o nome ao Cartão do Cidadão pois essa designação “não respeita a identidade de género de mais de metade da população portuguesa”. Custa a crer que, no momento que o país atravessa, os deputados do Bloco se preocupassem com bizantinices deste género – ou melhor, que nos façam perder tempo com disparates que só podem sair da iniciativa de gente preocupada em dar nas vistas, mesmo que à custa de imbecilidades. Não vou perder tempo a ilustrar o disparate que é querer que todas as palavras respeitem a dita “identidade de género” (mas podem sempre divertir-se um pouco ouvindo Ricardo Araújo Pereira no último Governo Sombra, a partir dos 40m30s), antes sublinhar que mesmo arriscando-se a cair no ridículo, como desta vez sucedeu, os bloquistas necessitam de temas assim para se identificarem com o ambiente politicamente correcto em que vivem as nossas elites, sempre temerosas de serem condenadas por saírem da nova norma.
Nenhum operário (ou operária) está preocupado com estes tipo de temas – mas a verdade é que o Bloco também não os representa. O Bloco é um partido urbano de bem-pensantes, talvez o partido português com menos base popular. O Bloco é mesmo o exemplo acabado do destino das esquerdas contemporâneas, que há muito deixaram de representar os desvalidos, por vezes deixando-os mesmo nos braços de partidos-gémeos mas de extrema-direita, e passaram a falar pelas classes médias rentistas, isto é, pelos que economicamente dependem do Estado e culturalmente vivem no pânico de não serem considerados “modernos” ou mesmo “progressistas”.
O Bloco padece também de todos os vícios típicos dos partidos formatados por intelectuais com pouca ou nenhuma ligação à vida real. Alimenta-se por isso de ideias feitas, de “verdades” que grita no Parlamento (já repararam como quase ninguém condena a agressividade, por vezes a roçar a grosseria, de muitas das intervenções de Catarina Martins?) e de slogans fáceis que ninguém trata de confrontar com a realidade. É um partido que se alimenta de ideologia que apresenta como correspondendo ao senso comum, beneficiando, e muito, de em Portugal existir uma velha cultura estatista e iliberal, enraizada tanto à esquerda como à direita.
Um bom exemplo deste viver de ideologia é um post de Mariana Mortágua no Facebook onde esta tenta desmentir a existência de uma relação entre subida do salário mínimo e desemprego de longa duração, uma relação referida no mais recente relatório da Comissão Europeia sobre Portugal. Jorge Costa já mostrou de forma eloquente que o raciocínio da deputada do BE está construído sobre falácias, pelo que o interessante neste caso é notar a reverência com que a nossa intelligentsia escuta Mariana Mortágua. Não se discutindo a sua inteligência, tal como não se discute a inteligência de Francisco Louçã (a esquerda é que gosta de desqualificar os que pensam de forma diferente como sendo incultos ou ignaros), o que importa notar é que, em política, a inteligência tende a potenciar o perigo das ideias erradas, não a evitá-las. Salazar e Cunhal são dois bons exemplos de como a inteligência ao serviço de ideais perigosos pode causar, como causou, imensos danos ao país.
O caso deste pequeno texto de Mariana Mortágua, para mais acompanhado por um gráfico, é exemplar por ser sintomático de um ambiente intelectual caracterizado pela quase total ausência de escrutínio das proposições dos bloquistas. Senão repare-se: a UE fala no seu documento do aumento rápido do salário mínimo, Mariana Mortágua responde falando de salários mínimos elevados; a UE fala do desemprego de trabalhadores com poucas qualificações, que tende a ser mais prolongado, e Mariana responde usando a percentagem de desempregados de longo prazo. Este forçar da realidade para encaixar nas ideias da bloquista deveria acender uma luz vermelha em quem tem o dever de escrutinar as suas posições, mas isso não sucede, pois a maioria ou já está contaminada, ou está antecipadamente rendida ao brilho da sua inteligência. O que, repito, é perigoso, pois cega-nos.
Aqui há uns tempos o PCP, pela voz de Jerónimo de Sousa, explicou um mau resultado eleitoral do seu partido pela falta de carinhas larocas. Estava enganado. O problema do PCP face ao Bloco é que ainda não aprendeu a enroupar o velho marxismo no pós-modernismo das actuais modas universitárias. O problema do PCP é que também ainda não compreendeu que as suas raízes operárias já pouco contam, o que importa é cativar os intelectuais que, mesmo não dispensando nenhum dos seus confortos burgueses, aliviam o peso das suas consciências aplaudindo as tiradas de Catarina Martins – as contra os banqueiros, porque é o que está a dar; as contra o “trabalho voluntário”, porque eles nunca sujaram as mãos a ajudar pobres e nem sabem o que isso é; e por fim as a favor da mais esdrúxula das causas, com medo de parecerem antiquados. Sucumbem alegremente a um populismo que, infelizmente, poucos à esquerda — uma das notáveis excepções é Francisco Assis — se atrevem a denunciar.
É muito confortável abdicar de pensar e ir na onda. A Catarina, a Marina e a Mariana agradecem, pelo que um dia destes acordamos nas mãos do Bloco sem saber como nem porquê. Já esteve mais longe de acontecer.
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