Desde a invasão da Ucrânia que, a julgar por sondagem, a taxa de aprovação do sr. Putin não pára de subir: andava nos 69% em Janeiro, anda nos 83% em Março. E a percentagem de russos que acham que o país está no bom caminho cresceu de 52% para 69% apenas no último mês. Os que acham o inverso são agora 22%, e eram 38% em Fevereiro.

Vista de fora, e consideradas as sanções e o isolamento, a tendência parece absurda. Os russos não sabem que deslizam apressadamente para uma pobreza que, pese os hábitos locais, boa parte das gerações recentes nunca conheceu? Não sabem que a propaganda do Kremlin é falsa por definição e particularmente falsa por vício? Não sabem que, seja qual for o desenlace desta história, e os custos para a Ucrânia e para o mundo em redor, o caminho da Rússia está longe de ser risonho? Uns saberão, outros não querem saber. E o controlo da informação, hoje parcial em última instância, não explica tudo. O que explica? Talvez a falta de tradição democrática, que os predispõe a desprezar os valores “racionais” que o Ocidente consagrou em favor de aconchegos vagos e, em última instância, um bocadinho suicidas. É verdade que mesmo a racionalidade ocidental já conheceu melhores dias. É sobretudo verdade que não serão os portugueses a explicar a atracção dos russos pelo abismo. Quem nos dera perceber a nossa.

Esta semana, afazeres profissionais forçaram-me infelizmente a assistir à tomada de posse do novo governo do dr. Costa. Felizmente, assisti pela televisão, porque não fui convidado (fiquei espantadíssimo, confesso) e porque as recomendações do famoso “distanciamento social” aplicam-se principalmente ao convívio com gente daquela. Isto para dizer que ouvi o discurso do prof. Marcelo, que deambulou uma meia hora pelo leste europeu antes de aterrar por cá, e o discurso do dr. Costa.

No caso do dr. Costa, devidamente autopsiado por Rui Ramos, não se tratou bem de um discurso, mas do típico rol de patranhas. Para enxovalhar os que duvidam do seu domínio da língua, o dr. Costa afiançou que lê muito. Pelo menos, vira muitas páginas, e acaba a enxovalhar os analfabetos que o levam a sério. O dr. Costa virou a “página da austeridade”. O dr. Costa encontra-se a virar a “página da pandemia”. O dr. Costa vai virar a “página da guerra”. Não tarda, chega ao posfácio. Para que o livro faça sentido, vamos a uma página de cada vez.

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A “página da austeridade”. Face aos membros da UE, o PIB per capita caseiro vem caindo aos trambolhões. Naturalmente, o poder de compra e o consumo acompanham-no e lançam-nos rumo aos braços solidários da Bulgária. O fisco devora o que pode e o que não devia poder. Os aumentos salariais dão vontade de pegar em armas perante o aumento do custo de vida. A vida não alcança o fim do mês e é melancólica no princípio. E o governo tempera o massacre com trafulhices de nomes finos, tipo e-voucher, decerto para efeitos de gozo adicional. Virou-se a “página da austeridade” para se entrar no longo capítulo da miséria.

A “página da pandemia”. Portugal liderou internacionalmente na vacinação e lidera na perpetuação de proibições que negam a eficácia das vacinas. Em determinado momento, batemos o recorde de mortes diárias, que só não foram mais graças à bendita proibição de se adquirir água em take away. À revelia da generalidade do planeta, continuamos a impor o decisivo açaime nas escolas e nos restaurantes (aqui se estivermos de pé, que sentados o bicho não se atreve). À imagem de metade do planeta, estrafegou-se a economia para conter um vírus que não se conteve de fintar as “regras”, suponho que a rir. Vira-se a “página da pandemia” para se consultar o índice da prepotência e da superstição.

A “página da guerra”. A dimensão da intrujice não merece comentários.

Tamanha colecção de mentiras não classifica unicamente o perpetrador, o qual, reconheça-se, possui um desplante raro até para os padrões do PS. As mentiras também definem o público a que são dirigidas. À semelhança dos russos, alguns portugueses acreditam nas mentiras. E alguns não se maçam com elas. No Palácio da Ajuda, o dr. Costa poderia ter anunciado a cura do cancro que o escrutínio seria idêntico: nenhum. O homem diz sempre o que quer na medida em que, não tendo escrúpulos, tem um público que lhe permite todas as humilhações e ainda agradece por cima, através do voto e da reverência. Sem esperança nem revolta, os portugueses preferem a pobreza garantida à prosperidade incerta. E ninguém melhor que o dr. Costa para lhes garantir a pobreza e negar qualquer hipótese de prosperidade.

O “comentariado” perdeu excessivas horas a debater os ministros. Os ministros são insignificâncias ao serviço do dr. Costa e do partido e da distribuição da popular “bazuca”, afinal a solitária motivação do governo. A tomada de posse é uma redundância: aquela gente tomou conta disto há muito. Por isso, dispensavam-se os salamaleques de quarta-feira, a retórica ordinária e uma cerimónia com criaturas pouco dadas à dita. De resto, nas formalidades, na estética, nos risinhos e no negrume, a cerimónia pareceu-se demasiado com um funeral. Não o daquela gente: o do país.