Estávamos em Fevereiro, começavam-se a ver imagens do surto de Covid-19 em Wuhang e pareciam cenas retiradas de um filme “O contágio“, por exemplo.
Aqui, no Hospital Garcia de Orta, começou por se falar num plano de contingência necessário e depressa se passou à acção. Na Urgência começou por se criar um espaço dedicado a pessoas com sintomatologia, inicialmente febre e/ou tosse e quadro epidemiológico relevante (viagem há menos de 14 dias a uma zona com covid). Foi ainda dada formação relativamente aos equipamentos de proteção individual a todos os profissionais.
Inicialmente, um dos gabinetes de triagem foi transformado no gabinete de suspeita de covid com lotação para uma pessoa e na altura pensei que era mais uma coisa “rápida e suave” como foi o ébola em Portugal. Fui mais um dos que imaginou que “era só mais uma coisa como a gripe A…”
Posteriormente, criou-se um espaço com lotação para 4 pessoas, conseguindo-se à posteriori 6 pessoas. Já na altura possuíamos equipamento de proteção individual, os famosos kits diferentes (número 0, 1 e 2, ainda do tempo do ébola). Contactava-se a linha SNS 24, o atendimento era muito, mas mesmo muito demorado, aguardavam-se horas para se obterem indicações da linha de apoio médico e eventualmente ativava-se uma equipa para vir buscar o utente para o Hospital Curry Cabral e lá realizar o teste covid. Mas não eram casos em abundante quantidade, eram pontuais mas que iam ocupando o espaço destinado a tal.
Começavam-se a associar pensamentos, viam-se imagens de Wuhan, começavam as notícias sobre Espanha (primeiro caso, 31 Janeiro) e Itália (primeiro caso, 20 Fevereiro) e a 02 de Março noticiou-se o primeiro caso de Covid-19 em Portugal…
Caíram as férias marcadas a todos os profissionais de saúde, encerraram-se todas as escolas do país, declarou-se o estado de emergência em Portugal. As idas aos serviços de Urgência em Portugal diminuíram exponencialmente (cerca de 45%) e foi assim mais fácil a sua reorganização.
Hoje, cerca de um mês depois do início deste surto em Portugal, este espaço foi francamente aumentado: temos capacidade para ter 21 pessoas suspeitas em simultâneo, realizamos testes covid, todo o hospital foi gradualmente rearquitectado de forma a dar resposta a esta ameaça o mais rapidamente possível. Foram criados circuitos internos de transferências, apoiados em seguranças, foram criadas equipas covid, serviços covid que tratam doentes covid, doentes críticos e doentes graves, todas as unidades de cuidados intensivos foram adaptadas, blocos operatórios reinventados e adaptados para realização de “cirurgias covid” e o serviço de urgência, que há um mês atrás possuía uma sala de reanimação, possui agora uma sala de reanimação covid, uma sala de reanimação de via aérea covid e uma sala de reanimação não covid… Possuímos ainda uma área completamente dedicada a testes de rastreio covid e de decisão clínica.
As úlceras de pressão aparecem na pirâmide nasal, nas orelhas, os vincos das máscaras demonstram o tempo que se passa mais equipado do que desequipado. Todos os doentes no serviço de urgência, covid e não covid, são obrigados a utilizar máscara e cada vez mais este conceito vai desaparecendo: são e somos todos suspeitos de covid em ambiente hospitalar! A guerra começou oficialmente e está longe de acabar! Os generais reúnem-se com frequência e estes exércitos da saúde continuam a lutar!
O medo começa a toldar a mente. “Eh pá… afinal isto é mais grave do que se julgava há um mês atrás…”
Muitos profissionais deixaram as suas famílias, afastaram-se dos seus filhos, mulheres, maridos para poder trabalhar em isolamento. A tristeza é cada vez maior, o sentimento cada vez mais profundo. Cuidamos, foi para isto que nos formámos, mas ninguém estava à espera disto, ninguém aprende a lidar com uma pandemia no curso base…
Temos crescido, temo-nos adaptado e temos sobrevivido como uma grande comunidade no serviço de urgência e enquanto soldados na linha da frente temos experimentado e temos sugerido. E tem sido graças a nos ouvirem e a todos se encontrarem focados e sintonizados que temos melhorado e desenvolvido.
As arquiteturas têm sido alteradas, muito material tem sido adquirido e o retorno pelo investimento tem sido obtido. Mas o mais fantástico tem sido a quantidade de normas orientadoras que gradualmente têm sido produzidas, retificadas, adaptadas e aplicadas. Estamos constantemente a aprender, a reaprender, a criar e a experimentar. Há muita confusão, mas acima de tudo há organização.
Se pensar no que este serviço era há um mês atrás e no que se tornou… sinto me orgulhoso, mas ao mesmo tempo muito preocupado!
Sinto-me preocupado com os números que se têm vindo a divulgar, nomeadamente de profissionais de saúde infectados. No dia 2 de Abril foi revelado que existem 1124 profissionais infectados — 13% da população infectada em Portugal (de um universo conhecido de 9034 pessoas infectadas), dos quais 206 eram médicos e 288 enfermeiros.
A 4 de Abril de 2020 sabia-se que o número oficial de pessoas infectadas era de 10524 e como tal certamente também o número de profissionais de saúde aumentou em 72 horas. Aguardemos.
Trabalhar, hoje em dia, é como andar com uma arma apontada à cabeça a toda a hora, sem saber quando vai disparar, e a única certeza é a de que a arma se encontra carregada e pronta a disparar! O peso nos ombros é muito grande, o cansaço é constantemente maior, as saudades da família são enormes.E sabemos que neste momento estamos a lidar com uma grande onda, mas que estamos a aguardar pelo tsunami que ainda aí vem.
Se estamos preparados para o que aí vem? Acredito que estamos a fazer tudo por tudo para que sim, para criarmos condições que permitam a adaptação gradual à realidade mais crítica que se avizinha, mas honestamente preocupam-me algumas questões nacionais:
- Não temos enfermeiros especializados em doente crítico suficientes para lidar com o verdadeiro doente crítico covid em cenário de catástrofe;
- Desconheço a compra de seringas infusoras e outros recursos consumíveis associados à utilização de mais ventiladores em Portugal;
- Existe escassez de EPI em Portugal e a sua eventual racionalização levará a outro grave problema:
- O número gradual de enfermeiros e médicos infectados poderá e certamente levará a uma escassez de recursos humanos
Mas nem tudo é mau neste País. Os cidadão são os principais contribuidores para a melhoria da qualidade na prestação de cuidados em contexto quase de cenário de guerra:
- Temos recebido muito equipamento de proteção individual doado pelos cidadãos;
- Temos recebido constantemente ofertas alimentares nos turnos;
- Temos recebido ofertas de shampôs e cremes hidratantes, que tanto têm valido nas mazelas criadas pela utilização quase contínua dos EPI;
- Temos recebido muitas mensagens de apoio.
É esta onda de solidariedade que torna este trabalho menos pesado. Foram as palmas que se bateram nas varandas em homenagem aos profissionais de saúde que deram mais força para lutar nesta guerra invisível e será certamente o esforço conjunto de todos os Portugueses que tão bem sabem unir-se em torno de uma causa nobre que irá permitir ultrapassar esta época tão difícil que estamos a atravessar.
Daqui do lado das trincheiras, e em pleno tempo de combate, em nome de todos os colegas, deixo um grande “Obrigado” a todos os que têm contribuído para nos sentirmos melhor. E já sabem: mantenham-se seguros, contribuam, mantenham-se em casa!