Amanhã, dia 1 de Maio, somaremos já mais de 40 dias consecutivos em Estado de Emergência. A circulação dos cidadãos estará limitada, como tem estado durante este período excepcional. Mas, tal como aconteceu na Páscoa, aplicar-se-ão controlos suplementares para impedir deslocações entre concelhos — a ordem é para evitar concentrações e prevenir retrocessos no controlo dos contágios. Muitas famílias passarão estes próximos dias separadas em virtude do confinamento, tal como passaram as festividades pascoais, aniversários ou funerais nas últimas semanas. Mas, amanhã, será também o dia em que todas estas regras ficarão momentaneamente suspensas, para as acções de rua organizadas pela CGTP em 23 cidades do país, em comemoração do Dia do Trabalhador. “A luta continua” será, mais do que um grito de ordem, a palavra-passe para um livre-trânsito que permitirá furar as restrições em vigor. Somos todos iguais — mas uns são mais iguais do que outros.

Antes que comecem os mal-entendidos, esclareço. Não estou a sugerir que o 1º de Maio não deva ser assinalado — é uma data marcante na sociedade portuguesa e tem o seu espaço. Mas há outras formas de o sinalizar: a UGT, por exemplo, cancelou todas as suas acções de rua. Estou, por isso, apenas a constatar que a CGTP vive numa realidade paralela (o que é problema seu) e que as autoridades públicas toleram à CGTP o que não concedem a mais ninguém (o que é problema nosso). Foi, aliás, o Presidente da República a destacar explicitamente estas comemorações no decreto presidencial com que propôs o terceiro Estado de Emergência consecutivo, quando nos dois anteriores (18 Março e 02 Abril) o direito à manifestação estava limitado.

Ora, mesmo sem grandes desfiles ou concentrações de pessoas, haverá discursos em espaços públicos, certamente com assistência. Mesmo que as deslocações sejam curtas, haverá necessariamente elementos da CGTP a atravessar concelhos para participar nas comemorações. Mesmo que os actos sejam sobretudo simbólicos, as acções de sensibilização da intersindical estarão completamente desfasadas do momento actual. Por exemplo, uma banda não pode dar um concerto para 30 pessoas num espaço aberto, mas Isabel Camarinha (líder da CGTP) pode manifestar-se com elementos da intersindical e discursar na Alameda, em Lisboa. Ou seja, independentemente da irresponsabilidade inerente à decisão de fazer 23 acções de rua pelo país, estas só serão realizáveis porque se aplicará uma tolerância excepcional no cumprimento das restrições em vigor.

A CGTP não tem, como disse, culpa que o poder político lhe abra as ruas para manifestações irresponsáveis (porque ainda em período de Estado de Emergência) e desnecessárias (a força das reivindicações da CGTP não depende de sair à rua no 1º de Maio). Afinal, quem deixa crianças brincar com fósforos assume o risco de elas queimarem os dedos. Mas, precisamente por isso, a pergunta tem de se colocar: o que justifica a atribuição deste excepcionalismo à CGTP?

Não será certamente alguma incerteza quanto à mensagem da intersindical. Há duas semanas, a CGTP publicou a sua extensíssima lista de reivindicações. E, há três dias, a voz de Jerónimo de Sousa, líder do PCP ao qual a CGTP tem ligações, defendeu-as em vídeo. Que exigências são essas? Mais emprego público, valorização e progressões nas carreiras, aumentos salariais, proibição do despedimento, redução do horário de trabalho, apoios sociais com salários a 100%. No fundo, tudo aquilo que ouvimos de PCP e CGTP em 2018, em 2012 ou em 1995. Com o acréscimo de hoje, com a crise provocada pela pandemia, esse discurso estar ainda mais desfasado da realidade — mas isso há que dar de barato: não seria uma pandemia a fazer PCP e CGTP abandonarem a sua crença em recursos infinitos.

À falta de explicações melhores para o excepcionalismo dado à CGTP, a que me parece mais certeira é a falta de força política, no governo e na Presidência, para enfrentar velhos papões do regime. Por um lado, ninguém no governo quer abrir uma guerra com o PCP, um dos braços da “geringonça”. Por outro lado, ninguém no governo considera que o custo de enfrentar a CGTP compensa o risco de lhes abrir uma excepção. No léxico actual, haverá quem lhe chame de “habilidade”. Mas o problema deste velho calculismo é que, em vez de se basear em princípios e rumos definidos, segue tácticas que mudam consoante as circunstâncias ou os destinatários. E, como não há bons ventos para quem não sabe para onde vai, assim não chegaremos a lado nenhum.

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