Este Natal tive uma epifania, uma revelação que subitamente decorou o mundo com um sentido palpável. Estava, dia 25, sentado num sofá, deixando o corpo repousar do cabrito, a ver televisão, a única actividade espiritual que os festejos natalícios permitem a um ser humano entorpecido. Tudo corria no melhor dos mundos, até porque tinha sido informado pela moderadora de um debate, naquele canal anteriormente conhecido pelo nome de “TVI24”, que Cristo era “a principal figura do cristianismo”. É sempre consolador assistir à confirmação das nossas convicções, mesmo das mais óbvias. Até que veio o abalo iluminante, ao modo típico destas coisas: o acaso. O acaso manifestou-se aqui sob a forma contemporânea do zapping. E o zapping levou-me à RTP3.

Estava a passar um programa de Fátima Campos Ferreira, o Primeira Pessoa. Na bela paisagem socalcada do Douro, Fátima juntara um grupo de alegres convivas. Alguns deles, não tive naturalmente dificuldade em identificar: Eduardo Souto Moura, Rui Veloso e Maria José Morgado. Uma outra, desconhecia-a por inteiro: Nini Andrade (a minha mulher explicou-me logo que é uma designer madeirense). E havia “o António”. A cara dele lembrava-me qualquer coisa, mas não conseguia saber o quê, o que me irritava tanto mais quanto os outros buscavam a sua opinião com visível interesse. E assim fiquei durante algum tempo, até o meu sogro, num momento-eureka, ter patriarcalmente conduzido a família à descoberta da verdade: o “António” era António Costa Silva, o homem do nosso “plano de resiliência”.

Devo dizer que achei aqueles alegres companheiros todos eles muito simpáticos. E até a Fátima Campos Ferreira, naquele seu estilo extrusivo de quem projecta impremeditadamente interrogações vulcânicas na pacífica atmosfera, eu consigo achar graça. Menciono este facto – com a maior das sinceridades, asseguro – para não se pensar que qualquer espécie de embirração pessoal dita o que a seguir direi e que pretende ser o eco fiel dos sentimentos que aquele programa me provocou.

Porque tudo aquilo se assemelhava, tendo por fundo a extraordinária paisagem duriense, a uma manta apressadamente cosida de banalidades sentimentais sobre Portugal e o estado do mundo, sem nexo ou intenção discerníveis. Que tenha reparado, durante o tempo todo do programa apenas Maria José Morgado, e por uma só vez, conseguiu produzir aquilo que vulgarmente se chama um pensamento. Tudo o resto ficava a meio caminho, com o desejo de capturar uma ideia sistematicamente frustrado pela ausência de satisfação dessa expectativa. E isto de tal modo que é inútil procurar saber quem disse o quê. Havia ali uma espécie de voz colectiva que confundia a fala dos sujeitos particulares.

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Como é que isto se descreve em palavras poéticas, isto que estamos a cheirar e a sentir?”, perguntava alguém. A poesia flutuava, aspirando à sublimidade, no tépido ar do Douro. E não apenas “as palavras da poesia do António Costa Silva, que poucos portugueses conhecem”. Quem diz poesia, diz imaginário: há sempre algo que “faz parte do seu imaginário”. O vinho, por exemplo: “O vinho tem uma magia própria”. A poesia, o imaginário – e, já agora, o vinho – trazem consigo a emoção: “Tenho o dom de me emocionar sempre”. Por isso, “os abraços fazem falta”. Sobretudo se consigo as palavras trouxerem a memória: “Que território da memória aqui está!”. A memória e a história: “A nossa história, desde o princípio, estava para acabar no dia seguinte”. O que, naturalmente, nos leva ao sentido da vida: “Não podemos deixar de nos interrogar sobre o sentido da vida”. E que seria do sentido da vida sem a sua transformação pelas ideias? “Sou das pessoas que acreditam que as ideias transformam o mundo”.

Poderia, acreditem, continuar, mas esta breve amostra do chorrilho de banalidades pseudo-poéticas e de interrogações falsamente profundas, à qual não falta sequer o fatídico “imaginário”, que não parece requerer a existência da imaginação, deve bastar. A questão que se coloca é: porque carga d’água julga a RTP conveniente produzir um programa de quase cinquenta minutos ocupado inteiramente com tais eflúvios mentais? E porque é que uma jornalista experiente julga digno apresentar em seu nome um tal produto? E porque é que cinco indivíduos conhecidos do público e com aparente – em certos casos indiscutível – sucesso nas suas respectivas carreiras se prestam ao triste espectáculo de uma conversa sem ponta por onde se lhe pegue, em que cada um compete em vacuidade com o outro?

Foi a perguntar-me isto que a tal epifania se deu. Eu sei que Portugal tem as costas largas no que respeita ao que os portugueses dizem e fazem. Mas deve haver algo em Portugal que explique tudo isto. Tudo isto: o aceno do vago subjectivo, o auto-comprazimento na pertença ao conforto de uma pequena sociedade, o prazer na exibição de bons sentimentos, a facilidade na ternura domesticada. E lembrei-me do abismo ao qual Eça se lançou na terrível última página d’A Ilustre Casa de Ramires, comparando amavelmente o carácter de Gonçalo Mendes da Maia, o longínquo descendente do temível D. Tructesindo, a Portugal. Aquilo no Douro era Portugal no dia de Natal.

A mim, acontece-me o mais das vezes sentir-me mais próximo de outro Portugal, aquele que, no mesmo romance, é representado pelo lavrador José Casco, com quem desonestamente Gonçalo, apesar de todas as suas enternecedoras qualidades, rompe um negócio, fugindo dele depois cobardemente. Passei, de resto, uma boa parte da tarde de ontem na companhia de muitos Cascos destes dias, à chuva e ao vento, no Regimento de Transmissões, no Porto, à espera da terceira vacina da Covid. Com palavras poéticas ou sem elas, são estas situações que “fazem parte do meu imaginário” e que me interpelam sobre o “sentido da vida”, despertando certas e determinadas emoções.

Mas não quero abusar da oposição entre a “elite” e o “povo”. Concedidas as devidas oportunidades, somos todos muito parecidos. Somos, afinal de contas, todos portugueses (e não, a nossa história não esteve sempre para acabar no dia seguinte). E as conversas que ontem, durante horas, ouvi à minha volta não se distinguiam excessivamente, pela qualidade, das do programa televisivo do Natal. Noutros tempos, uns e outros teriam, como os bravos de D. Tructesindo, deixado morrer o Bastardo, mergulhado num lago de sanguessugas, para defender uma honra qualquer. Já não é bem assim, felizmente. E os socalcos do Douro são sempre lindos de ver. Mas porquê aqueles diálogos, meu Deus? Não seria melhor esperar que as tais ideias – as que presumivelmente transformam o mundo e as outras, mais pacatas, que apenas servem para um pouco o esclarecer – lhes afagassem, mesmo ao de leve, o espírito?