Há poucos dias lia-se a seguinte manchete em alguns jornais: “Número de doentes em lista de cirurgia é o mais baixo dos últimos dois anos e meio.

Sendo este um dado factual não revela toda a verdade.

A explicação oferecida pela Administração de Saúde é a de que, apesar de todos os desafios colocados pela pandemia, tem havido um esforço de recuperação da atividade programada.

Mas o que não é dito é que, por causa das decisões tomadas em função da pandemia, informadas pelo modelo ideológico de prestação de cuidados de saúde do Governo, há quebras significativas no acesso a rastreios, a cuidados de saúde primários e a referenciação para consultas de especialidade.

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Podemos ter manchetes laudatórias em tempos eleitorais, mas a verdade é que os doentes não Covid nem sequer estão a chegar aos hospitais e é também por isso que a lista de inscritos para cirurgias é baixa.

São boas estatísticas, mas não são boas notícias.

A quebra nos rastreios oncológicos é particularmente grave e ilustrativa; por exemplo, estimam-se em 100 mil as mamografias que não foram realizadas. Por causa disto, estudos recentes apontam para um crescimento de mais de 15% do diagnóstico de cancro nos próximos anos, com menor taxa de sobrevivência, dado o estádio avançado a que os doentes chegarão aos hospitais.

Também nos cuidados de saúde primários há um problema grave. Os profissionais de saúde estão há meses capturados pelo Trace Covid, pelos ADR e pelos centros de vacinação. E as consultas por telefone – em muitos casos apenas para renovar a medicação de doentes crónicos –, não são uma solução nem cabal, nem sustentável. É urgente normalizar o funcionamento dos cuidados de saúde primários e reforçar o seu papel de promoção da saúde e prevenção da doença.

Portanto, há um atraso real no acesso – embora ainda não totalmente expresso em listas de espera; os profissionais de saúde estão esgotados; e há um SNS que padecia, já antes da pandemia, de inúmeras e bem identificadas fragilidades. Perante tudo isto, como nos devemos colocar?

Talvez aqui resida a maior diferença entre a direita e a esquerda, no que respeita à Saúde.

Para a direita a pergunta a responder, agora e para o futuro, é: como garantir o acesso a cuidados de saúde a tempo e horas para todos?

Já a pergunta da esquerda, bem presente no que ouvimos sobre as negociações do próximo Orçamento do Estado, é: como fortalecer o SNS?

A tónica da pergunta – servir as pessoas ou servir o SNS – muda tudo. Muda a hierarquia de prioridades, a conceção do sistema de saúde, as escolhas e políticas concretas.

Para garantir o acesso a cuidados de saúde a todos, a tempo e horas, precisamos do SNS como um meio fundamental, mas não um fim em si mesmo. Um meio que, sendo pago pelos contribuintes, tem de ser financiado eficientemente em função dos ganhos de saúde obtidos e não em função do número de atos produzidos. Tem de fixar profissionais de saúde, porque os remunera e responsabiliza, e não por que os amarra a ficar.

Para garantir o acesso a cuidados de saúde a todos, a tempo e horas, precisamos do SNS, mas precisaremos também da complementaridade dos setores privado e social, da indústria farmacêutica, dos laboratórios, das farmácias.

A pandemia já nos ensinou isso mesmo, a trabalhar “ombro a ombro”, para usar as palavras da Senhora Ministra da Saúde, precisamente quando a realidade cantou mais alto que a internacional socialista.

E com o envelhecimento do nosso país, por um lado, e a inovação promissora, mas dispendiosa, por outro, rapidamente se tornará claro que o SNS não é suficiente, por muito que continuemos a aumentar o seu orçamento.

Também por isso, a atual situação de rutura da ADSE é tudo o que não se deseja. Os funcionários da administração pública – os que não têm alternativa – foram informados da alteração de tabelas no próprio dia em da entrada em vigor e arriscam-se agora a perder acesso aos seus médicos e aos cuidados de saúde que tinham até aqui. O SNS será sobrecarregado com listas de espera acrescidas e todos perderemos.

Um Ministério da Saúde míope, que não vê nem para além dos seus preconceitos, nem para além da viabilização de cada Orçamento do Estado, não se apercebe nem do tamanho dos problemas com que se defronta nem das soluções viáveis que outros apresentam.

O desafio da Saúde é e será grande nos próximos anos. E enquanto a tónica da decisão política for apenas como fortalecer o SNS, não vamos estar a garantir o acesso a cuidados de saúde a tempo e horas para todos.