Em que mundo estamos a viver como resultado da invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin? O cenário mais provável é que estejamos a viver o início de uma Segunda Guerra Fria. E uma Segunda Guerra Fria não é o pior cenário. Apesar de haver muita gente pelo mundo fora que considera que a guerra da Ucrânia ou uma Segunda Guerra Fria como uma distração indesejável de problemas mais importantes.

Não queremos guerra, fria ou quente

As declarações do novo Presidente do Brasil, Lula da Silva, há uns dias, na sequência de uma visita do chanceler alemão Olaf Scholtz, vão nesse sentido. Afirmou que a Rússia “errou em invadir”, mas “se um não quer, dois não brigam”. E insistiu que temos de acabar rapidamente com a guerra, pois o resto mundo está a pagar um preço demasiado elevado. Também Moçambique, que tomou posse em janeiro de um mandato de dois anos como membro eleito do Conselho de Segurança da ONU, tem optado sistematicamente pela abstenção face a este conflito. Percebo que países em desenvolvimento queiram apostar sobretudo no seu desenvolvimento, para isso precisam de paz. Mas normalizar o regresso das guerras de conquista e anexação pelas grandes potências não tornará o mundo mais seguro, mais pacífico ou mais próspero.

Percebo que também haja várias razões para resistir à ideia de uma Segunda Guerra Fria. Muitos países insistem que não querem ser forçados a escolher blocos, não querem alinhar automaticamente com a China, a Rússia ou os EUA, temem que um mundo dividido retarde ao seu desenvolvimento. O Presidente Biden tem, também por isso, insistido na ideia de que os EUA não desejam uma nova Guerra Fria. Mas nem sempre a história segue o caminho desejado. E se é claro que o passado não se repete, também não faz sentido definir uma Guerra Fria em termos tão restritivos que o conceito apenas tem cabimento para o confronto geoestratégico e ideológico do período de 1945-1991 entre os EUA e a União Soviética.

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A Guerra Fria como a ordem global da era nuclear

Qual é a principal característica definidora duma Guerra Fria? George Orwell publicou um texto de notável clareza a esse respeito, escassos meses depois da primeira e única utilização de bombas atómicas, em 1945. Nele deixa claro que o aspeto central do novo conceito de “guerra fria”, que ele ajudou a criar, era o equilíbrio do terror, resultante do enorme potencial destrutivo das armas nucleares. Diz Orwell: “temos diante de nós a perspetiva de dois ou três superestados monstruosos, cada um possuindo uma arma pela qual milhões de pessoas podem ser exterminadas em poucos segundos, dividindo o mundo entre elas. Tem sido assumido apressadamente que isso significa guerras maiores e mais sangrentas […] mas […] o desenvolvimento mais provável é que as grandes potências façam um acordo tácito de nunca usar a bomba atómica umas contra as outras.” A característica central da Primeira Guerra Fria não é, portanto, ser bipolar ou um choque ideológico, é ser a primeira ordem global da era nuclear. Eu diria mesmo que, se não é a ordem global inevitável num mundo com potências nucleares, é pelo menos a mais provável. Exceto em situações de unipolaridade, como a que vivemos de 1991 até há poucos anos atrás, e que a história nos mostra serem excecionais.

É a existência de armas nucleares que cria o notório equilíbrio do terror. É assim, sobretudo a partir de 1952-53, com o surgimento de bombas termonucleares ou de fusão nuclear com um poder destrutivo praticamente ilimitado. É isso que explica que um sistema com duas grandes potências com duas visões incompatíveis do mundo não tenha levado a uma nova grande guerra mundial. Isso e alguma sorte em evitar escaladas indesejadas e o emprego acidental de armas atómicas. Se uma paz fortemente armada e uma aliança coesa fez Estaline pensar duas vezes antes de atacar a Europa Ocidental, não vejo melhor garantia de segurança em liberdade face a Putin e outros tiranos nucleares atuais. Claro que uma paz fortemente armada encerra grandes riscos e exige grande autodisciplina das grandes potências. E é uma paz apenas no sentido de ausência de grande guerra entre grandes potências, o que não é pouco, mas é diferente da completa ausência de conflitos armados. A Primeira Guerra Fria caracterizou-se por pouco mais de 280 conflitos, mais de 80% deles não-convencionais, irregulares, indiretos e assimétricos.

Uma Segunda Guerra Fria como mal menor

Quais são os sinais que apontam no sentido de uma Segunda Guerra Fria? Estamos a viver num mundo mais propenso a crises militarizadas como resultado da transição de poder, com a perda da clara hegemonia dos EUA em todas as dimensões relevantes. Estamos a assistir à afirmação de, pelo menos, uma nova potência global, a China, e de várias potências regionais com arsenais nucleares – já vamos num total de 9 – praticamente invulneráveis a ameaças externas. Estamos perante um mundo mais dividido em termos ideológicos, polarizado também pelo regresso de modelos políticos iliberais e autoritários de aparente sucesso.

É fundamental para se consolidar uma Segunda Guerra Fria que o tabu nuclear volte a ser o travão fundamental na escalada de choques entre grandes potências. É fundamental que se respeitem as regras dos conflitos indiretos, em que apoio aos inimigos de uma das grandes potências não é uma causa para um conflito direto entre elas, e menos ainda para uma escalada para o nível nuclear. Infelizmente, o Kremlin não tem mostrado, pelo menos na sua retórica, respeito pelas regras duma guerra fria. Nomeadamente deixou de respeitar uma regra fundamental que ajudou a estabilizar a Primeira Guerra Fria – não se alteram fronteiras pela força. Pode-se contrapor que os EUA não respeitaram a esfera de influência russa ao apoiar uma Ucrânia livre. Mas a verdade é que a Rússia pós-1991 nunca teve a capacidade de estabilizar uma verdadeira esfera de influência. Com base nos dados disponíveis, acabarmos com uma Segunda Guerra Fria seria um mal menor.