Quais são os critérios de seleção de talentos para os principais cargos políticos de Portugal? Teremos os melhores nas funções mais relevantes da nossa nação? Quão fechados são os círculos de recrutamento de pessoas para cargos públicos? Seria importante haver uma maior base de seleção junto do setor privado? Como podemos incentivar pessoas independentes a participar na vida política? Como podem os partidos contribuir para esse processo?
Sem desejar atacar pessoalmente o currículo ou a qualidade dos nossos ministros, passo a descrever sucintamente o trajeto de quatro exemplos que julgo serem ilustrativos do padrão que pretendo identificar.
Vamos começar por Pedro Nuno Santos, o Ministro das Infraestruturas e da Habitação de Portugal desde 2019. Depois de terminar a sua licenciatura em Economia, trabalhou no Grupo Tecmacal, detido pelo seu Pai. Tornou-se secretário-geral da Juventude Socialista com 26/27 anos, cargo que exerceu de 2004 a 2008. Foi deputado à Assembleia da República de 2005 a 2009 e de 2011 a 2015, ano em que se torna Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, até fevereiro de 2019.
Vamos a outro exemplo. Augusto Santos Silva, o Ministro dos Negócios Estrangeiros desde 2015. Para além do seu percurso como docente, foi Deputado à Assembleia da República, sucessivamente, nas legislaturas iniciadas em 1995, 1999, 2002, 2005, 2009, 2011 e 2015, foi Secretário de Estado da Administração Educativa (1999-2000), Ministro da Educação (2000-2001) e da Cultura (2001-2002), nos governos de António Guterres e Ministro dos Assuntos Parlamentares (2005-2009) e da Defesa Nacional (2009-2011) com José Sócrates.
Outro exemplo. Mariana Vieira da Silva, atual Ministra de Estado e da Presidência. Começou a sua carreira em 2003 na União das Mutualidades, tendo sido contratada por Edmundo Martinho que por sua vez foi escolhido por José António Vieira da Silva (Pai de Mariana) para provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa em 2017. Volvidos 2 anos tornou-se Assessora da Ministra da Educação, de 2005 a 2009, passando a Adjunta do Secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro de 2009 a 2011. Exerceu depois as funções de Secretária de Estado Adjunta do Primeiro-Ministro, entre 2015 e 2019, e de Ministra da Presidência e da Modernização Administrativa em 2019.
Vamos ao último exemplo. Graça Maria da Fonseca Caetano Gonçalves, Ministra da Cultura desde 2018. Foi investigadora do Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, entre 1996 e 2000. Foi Diretora Adjunta do Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça entre 2000 e 2002. Exerceu funções como chefe do gabinete do Ministro de Estado e da Administração Interna e do Secretário de Estado da Justiça no XVII Governo Constitucional (2005-2008). Foi Vereadora na Câmara Municipal de Lisboa com os Pelouros da Economia, Inovação, Educação e Reforma Administrativa, entre 2009 e 2015. Foi Secretária de Estado Adjunta e da Modernização Administrativa no XXI Governo Constitucional até outubro de 2017.
Olhando para estes exemplos, e para outros que valerá a pena consultar, vemos um padrão no percurso da generalidade dos nossos ministros. Formaram-se, muitos foram professores ou investigadores, tiveram cargos públicos e depois tornaram-se adjuntos, secretários de estado ou ministros. Quase nenhum trabalhou no setor privado. Quase todos participaram em anteriores Governos Socialistas.
Será importante referir que este padrão se aplica especialmente a este Governo, mas também se aplicou aos anteriores. Será também incontestável a relevância de ter nos Governos pessoas com trajetos de indiscutível valor em cargos públicos e políticos. Mas, atendendo à hegemonia desse tipo de elementos, não posso deixar de colocar algumas questões.
Quando o Primeiro Ministro e o Presidente da Républica falam no princípio da não renovação de mandatos não deviam olhar para alguns dos nossos ministros? Não teria sido importante ter alguém com uma sólida experiência por exemplo na área da Habitação e das Infraestruturas? Possivelmente com provas dadas na dinamização de uma empresa ou na construção de obras de engenharia e tecnologia? Não temos em Portugal um engenheiro ou empresário mais bem preparado para resolver o problema da habitação e gerir os difíceis temas da TAP, 5G, novo aeroporto, ferrovia e portos? Não haveria um outro político, diplomata ou académico melhor habilitado para comunicar além-fronteiras as potencialidades do nosso País e reformar as agências de atração de investimento direto estrangeiro? Não existem muitos homens e mulheres, trabalhadores do setor privado, gente desta nova geração talentosa, que servissem Portugal com maior renovação de ideias? Fará sentido termos tantos ministros com passagens nos Governos de António Guterres e José Sócrates?
Sabemos que o nosso Primeiro Ministro também fez parte desses Governos e também teve uma carreira eminentemente política. Talvez por isso tenha escolhido os seus pares, procurando neles identificação e confiança. Mas talvez tenha exagerado.
No meu entender, se existem pastas ministeriais em que a experiência politica é bastante recomendável, noutras, como a Economia, a Agricultura, o Mar, a Saúde, o Ambiente, os Transportes, as Infraestruturas e a Habitação, a primazia deveria ser dada a pessoas com competências adquiridas fora dos círculos políticos, de preferência no setor privado ou pelo menos em cargos públicos executivos.
Mas pior que a ausência de escolhas mais amplas é a partidarização das mesmas, nomeadamente quando os ministros são selecionados não pela sua competência, mas com o objetivo de silenciar uma eventual oposição interna, numa lógica de manter os amigos perto, mas os inimigos ainda mais perto.
Entretanto, outras nomeações têm chamado a atenção da sociedade civil:
- A nomeação de Mário Centeno, diretamente de Ministro das Finanças para Governador do Banco de Portugal, a entidade reguladora e supervisora do sistema bancário, no qual o Ministro tanto interveio nos últimos anos.
- A não recondução de Vítor Caldeira no Tribunal de Contas, tendo o Governo optado pela nomeação de José Tavares, ou seja, em nome da renovação acaba por eleger uma pessoa que está há mais de 30 anos no Tribunal de Contas.
- A não nomeação de Ana Carla Almeida, considerada por um Júri Internacional a melhor candidata para a Procuradoria Europeia, um órgão Europeu independente de combate à fraude. No seu currículo, Ana Almeida tem uma profunda experiência no DCIAP, tendo nos tempos mais recentes liderado o processo das golas anti-fumo. Mas o Governo Português, e em particular a Ministra da Justiça, optaram pela escolha do Procurador José Guerra, anteriormente nomeado pelo Governo de José Sócrates para o Eurojust, órgão que estabeleceu a ligação entre as autoridades portuguesas e inglesas na investigação do caso Freeport. Valerá a pena mencionar que José Guerra é irmão do ex-presidente do Instituto de Conservação da Natureza, Carlos Guerra, que teve um papel relevante na viabilização da construção do Freeport, tendo sido posteriormente constituído arguido nesse mesmo caso.
- A não recondução da Procuradora Geral da República, Joana Marques Vidal, um rosto importante no combate à corrupção, nomeadamente nos casos relacionados com José Sócrates, Armando Vara, Ricardo Salgado, Oliveira e Costa, Rui Rangel e Manuel Vicente.
- A nomeação de Vítor Escária para chefe de gabinete do Primeiro Ministro depois deste já ter exercido essas funções na governação de José Sócrates e de ter sido constituído arguido no caso das viagens pagas pela Galp no Euro 2016.
- A combinação entre PS e PSD para as “eleições” dos presidentes da CCDR, que levou à eleição do ex-secretário de Estado José Apolinário para a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve.
- A nomeação de Alberto Arons de Carvalho para o Conselho Geral Independente da RTP, um homem com fortes ligações ao PS, que foi Secretário de Estado da Comunicação Social de 1995 a 2002 e deputado à Assembleia da República durante 23 anos.
Cada uma destas escolhas terá as suas razões, podendo ser individualmente defendidas ou criticadas. Aqui não farei esse exercício, limitando-me a analisar o padrão e levantar mais perguntas. Não haviam pessoas mais independentes para servir alguns destes cargos? Será esta a melhor forma de demonstrar que em Portugal o mérito é devidamente premiado? Será que quem luta contra a corrupção é posto de lado? Damos primazia à competência quando fazemos este e outro tipo de escolhas? Haverá um açambarcamento das instituições por parte dos partidos?
A resposta é simples, mas muito preocupante. Um dos maiores problemas do nosso País são os jobs for the boys. É a manutenção de um sistema viciado, de proteção do clã, incapaz de chamar os melhores, preocupado em manter as redes de influência nos setores político, económico, mediático e judicial, em vez de se focar na definição de uma visão de longo prazo para o País e na atração das melhores pessoas para a concretizar.
Só isso poderá explicar a ideia da criação de 600 freguesias num momento como este, ou o record de pessoas nos gabinetes de membros do Governo que subiu de 888 para 1236 em junho de 2020.
Chegados aqui, algo tem de mudar. A qualidade da democracia não se esgota no exercido do direito do voto. Passa pela robustez das nossas instituições e pela participação dos cidadãos na dinâmica democrática. Uma maior renovação dos cargos públicos, nomeadamente com pessoas com alguma experiência no setor privado, reforçaria certamente a competência das nossas instituições.
Adicionalmente, importa garantir a independência, face ao Governo e aos partidos, de titulares de cargos relacionados com os media (RTP), com a justiça e supervisão/regulação (procuradoria, tribunais, autoridades da concorrência, CMVM, Banco de Portugal, entre outros) ou com outras funções relevantes, como por exemplo da administração da Caixa Geral de Depósitos ou na Administração Central.
O atual alheamento político da sociedade é o resultado de um sistema hermético, seja no âmbito dos partidos, seja nas nomeações para cargos públicos. No Governo, na Presidência da República e na oposição, encontramos demasiados carreiristas políticos, que andam há décadas a rodar cargos público-políticos. Como resultado, a taxa de abstenção nas últimas eleições presidenciais, legislativas e europeias foi respetivamente de 51,3%, 51,4% e 69,3%.
Por estas razões, será urgente repensar a lei eleitoral, porventura criando um sistema misto, incluindo ciclos uninominais, permitindo que as pessoas votem não só no partido, mas também num candidato específico a deputado, criando assim um maior vínculo entre eleitos e eleitores.
Exige-se também uma reforma dos partidos. Estes não podem ser apenas máquinas focadas nas eleições seguintes ou meros instrumentos de propaganda de vulgaridades e personalidades. Devem promover o estímulo cultural, pessoal, social e político dos cidadãos, instigando-os a pensar no futuro do seu País.
Da mesma forma, para cativar os melhores académicos, técnicos e trabalhadores do setor privado, será importante reforçar a atratividade das funções público-políticas, pois só assim poderemos tirar proveito desta nova geração talentosa e bem formada.
O valor da social-democracia diminui quando é composta apenas por encartados de partidos hegemónicos, mas cresce com igualdade de oportunidades, com inclusão e com uma maior participação de todos nas mudanças que temos de efetuar e na resolução dos problemas sociais, económicos e políticos com que nos vamos deparando.
Urge, por tudo isto, refundar o sistema político, aprofundar a democracia pluralista e representativa e abrir as portas dos partidos a uma maior participação dos portugueses e das portuguesas, especialmente dos mais jovens.
22 de outubro de 2020