Podemos ter ideias de Estado diferentes. Um Estado maior ou menor. Mais ou menos dirigista. Interventivo. Mais ou menos conservador. Ou soberanista. O que não pode ser diferente é a ideia de termos um Estado Democrático onde se promova o bem comum e a alternância no espectro dos partidos/coligações democráticas.
O nosso Estado não está a promover o bem comum. Não porque seja diferente da ideia de Estado que defendo, e é diferente, mas porque a própria ideia de Estado defendida tem sido sucessiva e ruinosamente gerida: é o novo Xanadu, «o mais caro monumento que alguém construiu para si mesmo». E este si-mesmo é, não Charles Foster Kane, mas o Partido Socialista.
O PS de António Costa está a destruir o PS de Mário Soares. Isto, depois de ter dizimado a esquerda que lhe facilitou o poder e enquanto inventa uma extrema direita composta pela indistinção entre o PSD, a Iniciativa Liberal e o Chega. É, para António Costa, irrelevante a lição francesa, a erosão das forças democráticas, a subida do populismo que patrocina e através do qual os movimentos extremistas se fortalecem – se, para António Costa, a dificuldade em entender isto for a língua francesa, mudamos para o português: sem a degradação política do PT de Lula, Bolsonaro, essa vergonha para a democracia, não se teria elegido, nem Lula reeleito, nem o Brasil fracturado. Este PS do poder pelo poder não é o PS ao lado do qual o PSD e os democratas resgataram o Portugal de 25 Abril a 25 de Novembro de 1975. Este PS não é confiável. É, se isto se pode dizer, aparelhista: o que interessa Portugal, e os portugueses, diante da devoração da coisa pública para satisfação própria?
Portugal está a chegar ao limite. Dependentes da economia internacional, dos fundos externos, dos apoios sociais, sem os quais a quase metade da população viveria abaixo do limiar da pobreza, com a inflação e as taxas de juro somos empurrados da pobreza para a miséria. Ao mesmo tempo, faz-se o sacrifício final da classe média, que em Portugal, note-se, é pobre.
Junte-se a isto a percepção aumentada da desigualdade social nas suas mais variadas formas: da crise da habitação e do emprego com salário digno à imigração dos jovens; do favorecimento dos jotas ao trânsito entre assessorias, secretarias, ministérios; das relações familiares, filiais, conjugais, fraternais, de amizade, aos contratos por proxy e por ajuste directo. Após um número escandaloso de casos e casinhos públicos, com governantes, nomeações – até para entidades reguladoras, aquelas que fazem parte do sistema de escrutínio do poder para a manutenção da democracia -, este PS dá o dito por não dito, uma e outra vezes, e mesmo no alargamento familiar do conselho de ministros.
É necessária transparência. É preciso fazer um genograma governativo. Os vícios do aparelhismo são uma quebra de confiança no pacto democrático.
A excelente Adélia Prado tem, num belíssimo poema, um verso que diz «este excesso de realidade me confunde». O PS, pela razão oposta, também me deixa perplexa: há falta de realidade nos nossos governantes, vindos eles próprios do aparelho sem passagem nem obra no mundo onde os restantes de nós vivem e têm de se provar, de falhar, de resistir e perseverar. O PS, à semelhança de qualquer outro partido democrático, deveria ser o filtro dos seus aparelhistas, gente que pulula no exercício do «venha a nós», não a sua incubadora. Os interesses do PS, e os números demonstram-no à saciedade, nem vale a pena voltar a falar da Roménia, não são os interesses do nosso país, não são os nossos interesses.
É do meu interesse, do nosso interesse, e do interesse da democracia, que os partidos que a representam, ofereçam segurança na alternância democrática. Ainda que tenhamos valores díspares. Discutamos, discordemos. Tenhamos de negociar ponto a ponto. Mas isto, não. Isto é outra coisa.
O PS precisa de ser refundado. Enquanto isso não acontece, sugiro que os nossos governantes saiam de Xanadu e vão para fora cá dentro: procurem emprego fora das empresas e instituições oferecidas pelo genograma. Vivam um par de anos com o salário médio de 1326 euros, sem perspectivas de progressão por mérito: arrendem casa, paguem o carro, a gasolina, os livros dos miúdos, a conta da água e da luz. Ou passem só pelo supermercado e vejam que meia dúzia de ovos e um litro de leite custam dois euros e setenta e quatro cêntimos.
A autora escreve segundo a antiga ortografia