1 As ideias da ministra da Justiça para melhorar o combate à corrupção, que o Observador antecipa aqui, merecem uma análise cuidada pelo momento em que surgem, pela sua importância e pelas consequências que poderão ter.

São apresentadas simbolicamente no dia internacional contra a corrupção — e poucos dias após o Conselho de Ministros ter aprovado a constituição de um grupo de trabalho que irá aconselhar o Governo a definir um Estratégia Nacional Contra a Corrupção. Francisca Van Dunem, que tutela diretamente o grupo de trabalho, quer deixar, e bem, uma marca na Justiça.

Em segundo lugar, representam uma clara evolução. Não são as ideais, não representam uma revolução, mas significam mais passos no caminho certo de proporcionar mais instrumentos legais aos tribunais e ao Ministério Público para quebrar os pactos de silêncio que caracterizam os acordos feitos entre corruptores e corrompidos.

E, mais importante do que isso, poderão ser um contributo importante para melhorar a eficácia e a celeridade dos tribunais.

Finalmente, as medidas de Van Dunem representam igualmente um reconhecimento de que, além aposta na prevenção inscrita no Programa do Governo, é necessário complementá-la com medidas repressivas. Obviamente que educar só e apenas não chega. É preciso também reprimir, sancionar e punir para combater a descrença que os cidadãos muitas vezes têm em relação à Justiça.

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2 A aposta na justiça negociada defendida por Francisca Van Dunem merece uma análise mais pormenorizada. Trata-se de uma ideia antiga de Van Dunem que coloca em causa “determinados quadros mentais correntes” e “quadros culturais instalados”, como a então procuradora-geral distrital de Lisboa escreveu em 2012, e  Mais do que isso: representa uma luta contra o tradicional conservadorismo da comunidade jurídica.

E o que é a justiça negociada? É possibilidade de potenciar a colaboração dos arguidos com a Justiça, permitindo ao Ministério Público propor a um juiz de instrução e/ou a um juiz de julgamento a dispensa ou a atenuação especial da pena. Na prática, é permitir que os arguidos possam colaborar com a Justiça, sendo premiados por isso. Daí essas medidas serem vistas como “direito premial”.

O alargamento das possibilidades de justiça negociada, que já existem na lei portuguesa, representa, por isso mesmo, um avanço muito significativo. Por três razões:

  • porque é uma aposta séria na celeridade e na eficácia do sistema penal. A aposta no alargamento de acordo negociado na fase de inquérito e na fase de julgamento permitirá uma descoberta mais rápida da verdade material e o alcance igualmente mais célere da paz jurídica. A “celeridade e a economia processual” também “são valores inerentes ao principio constitucional do Estado de Direito”, como escreveu Van Dunem em 2012.
  • porque representa a importação de um modelo que tem dado ótimos resultados em países como os Estados Unidos, o Reino Unido, a Espanha, Alemanha, Itália, França, Holanda, etc. Portugal não pode julgar-se uma espécie de país juridicamente superior quando aqueles países são economicamente muito mais avançados desde há muito – e com uma Justiça célere e eficaz.
  • e, finalmente, porque representa uma consciência que é quase pecaminosa para a comunidade jurídica portuguesa: os meios do Estado português são parcos, a Justiça é cara, logo um acordo que permita alcançar a paz jurídica mais célere permitirá poupar recursos e meios.

Afinal, havia razão para ter esperança em Francisca Van Dunem, como tinha escrito aqui.

3O alargamento das possibilidades do direito premial e outras ideias descritas aqui só serão possíveis se forem vertidas em letra de lei, como é óbvio. Mas é importante não ter ilusões. Os maiores adversários da ministra da Justiça virão do próprio partido do Governo, nomeadamente do seu Grupo Parlamentar do PS.

Não é preciso ser bruxo para perceber que deputados socialistas como Jorge Lacão farão tudo para lutar contra as ideias de Francisca Van Dunem, aliando-se ao PSD de Rui Rio e aos social-democratas desejosos de colocar a Justiça na ordem. Já se viu esta estranha mas coerente aliança na legislatura passada no âmbito da discussão da composição do Conselho Superior do Ministério Público — um filme que se está a repetir no início dos trabalhos da dita e suposta Comissão da Transparência liderada por Lacão.

Depois de quatro anos em que a Comissão da Transparência pouco ou nada fez para decidir tudo à pressa no final da legislatura anterior (como recordaram aqui e aqui Susana Coroado e Susana Peralta), o espetáculo indecoroso começou mais cedo.

Primeiro, Jorge Lacão começou por propor a realização de reuniões da Comissão da Transparência à porta fechada e longe dos olhares da comunicação social quando o tema fosse o” levantamento de imunidades, impedimentos e matérias conexas”, bem como a classificação como confidencial de qualquer documentação que chegasse à comissão ou de qualquer parecer emitido pela comissão. Porquê? Para proteger os dados pessoais dos deputados. É difícil igualar o contexto ridículo de uma comissão dita de transparência trabalhar à porta fechada, como vai, de facto, acontecer.

Mais tarde, e por proposta do PSD de Rui Rio, Lacão conseguiu fazer pior: propôs à Comissão de Transparência que os pedidos de levantamento de imunidade parlamentar enviados pelo Ministério Público ou pelos tribunais passem a ser fiscalizados. Na prática, o Parlamento vai exigir ao Poder Judicial, entre outras questões, que fundamente com “elementos mínimos” a razão de ser das suas suspeitas. Ainda não é claro se essa a versão final das regras e procedimentos para apreciação de imunidades, incompatibilidades e impedimentos que contém essa exigência, e que foi aprovada em reunião de coordenadores realizada à porta fechada (como não podia deixar de ser), será votada. Como é próprio de uma Comissão da Transparência pouco ou nada se sabe sobre os seus trabalhos.

Ou seja, em vez de colaborar com o poder judicial, o poder legislativo está a preparar-se para comprar guerras com os procuradores e os juízes para proteger os senhores deputados que sejam suspeitos da prática de crimes no exercício de funções públicas ou privadas.

Daí a conclusão óbvia: o PS de Jorge Lacão e o PSD de Rui Rio tudo farão para contrariar as propostas de lei que necessitem de aprovação do Parlamento.

Eis um processo a seguir com atenção.