1 São 30 como podiam ser 50, 70 ou até 100 medidas. A análise seria exatamente a mesma: a esmagadora maioria das propostas do Programa do XXII Governo Constitucional para supostamente combater a corrupção são medidas ocas, vazias e que não correspondem a uma estratégia nacional contra a corrupção que entidades internacionais como o GRECO – Grupo de Estados contra a Corrupção ou a OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico têm aconselhado Portugal a seguir.

O segundo Governo de António Costa tenta construir, uma vez mais, um simulacro de um combate que manifestamente não quer empreender porque na área da Justiça, como em tantas outras áreas da governação, a sua ambição é pequenina, muito pequenina. E ainda por cima com um primeiro-ministro que prometeu em maio que iria reforçar os meios de combate à corrupção — o que não cumpriu nem vai cumprir.

Entre conceitos ultramodernos como a “pegada legislativa”, “o princípio dos quatro olhos” e medidas de duvidosa utilidade, o Governo esquece-se precisamente do objetivo a que se propõe: “travar um combate determinado contra a corrupção.” Nem demonstra ter determinação nem quer as soluções que se impõem por serem “simples e populistas” que, “apesar de atrativas, não funcionam”.

O que o Governo quer, naquelas derivas utópicas que tão bem caracterizam a esquerda e as suas nefastas boas intenções, é “ir à raiz dos problemas e resolvê-los de forma estrutural”, em vez “de continuar indefinidamente a aumentar meios e recursos”. É um bocadinho como tentar acabar com a fome no mundo mas sem dar alimentos à população — uma ideia genial que faz de António Costa um sério candidato a secretário-geral das Nações Unidas.

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2A sério: o Ministério Público não tem dinheiro para ter um corpo de peritos próprios, a Polícia Judiciária faz questão de escrever nos processos que não pode investigar porque não tem meios para o fazer mas o Governo de António Costa promete ir “à raiz dos problemas”. Se não fosse triste, bem se podia dizer o Programa do Governo foi escrito pelos redatores do Inimigo Público.

E como é que o Governo se propõe ir “à raiz dos problemas”? Vamos descrever algumas que vale a pena (ver pág. 30 a 33 aqui).

  • Medida n.º 3. “Assegurar uma maior cooperação com o GRECO – Grupo de Estados contra a Corrupção”. Mas não é isso que supostamente Portugal deveria assegurar ao fazer questão de pertencer a um órgão de monitorização do Conselho da Europa? Ou essa é uma resposta ao relatório de junho do GRECO que colocava Portugal a liderar o ranking dos países que menos cumprem as suas recomendações?
  • Medida n.º 5. “Consagrar o princípio da “pegada legislativa”, estabelecendo o registo obrigatório de qualquer intervenção de entidades externas no processo legislativo, desde a fase de conceção e redação do diploma legal até à sua aprovação final”. Significa isto que vamos passar a conhecer todas as propostas feitas por advogados aos titulares de cargos políticos e os respetivos conflitos de interesse, só para verificarmos o que já sabemos: que os verdadeiros legisladores são os grandes escritórios de advogados? Basta ler esta peça, que revela como um dos principais escritórios do país fez a legislação que interessava aos interesses do seu cliente (a EDP), para percebermos que a “pegada legislativa” de nada serve, se não for acompanhada de medidas concretas sobre os conflitos interesse dos advogados.
  • Medida n.º 12. “Consagrar o ‘princípio dos quatros olhos’”, segundo o qual qualquer decisão administrativa que “conceda uma vantagem económica acima de determinado valor tem de ser assinada por mais do que um titular do órgão competente ou confirmada por uma entidade superior, e publicitada num portal online onde possa ser escrutinada por qualquer cidadão”. Mais uma daquelas ideias que parecem fantásticas mas que vai aumentar a burocracia. Já agora, se o Governo quer aumentar o escrutínio, que elimine as restrições cada vez mais alargadas da lei de acesso aos documentos administrativos que têm impedido os jornalistas de ter acesso a documentação pública e fomente medidas concretas para acabar com a cultura do segredo que caracteriza a administração e o poder político.
  • Medida n.º 14. Criar um “departamento de controlo interno que, com autonomia, assegure a transparência e imparcialidade dos procedimentos e das decisões” de “entidades administrativas” que lidem com “questões que possam envolver especiais cautelas de imparcialidade e transparência” é uma daquelas medidas completamente vazias de tão genérica que é. Além do mais, alguém acredita que uma administração politizada e corporativista como a nossa vai criar um compliance interno “com autonomia”? Só na cabeça do socialista bem intencionado que escreveu aquelas linhas.

Muitas das outras medidas vêm na mesma linha de pensamento Umas simplesmente querem prosseguir o programa Simplex, outras não querem construir “contradições normativas ou labirintos jurídicos que possam suscitar a necessidade de comportamentos administrativos “facilitadores”. Enfim, são medidas para ‘encher’ o Programa do Governo e para ‘inglês ver’.

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Não significa isto que não existam boas medidas no Programa do Governo. Por exemplo, “levar a cabo campanhas de consciencialização junto das entidades públicas, alertando para os comportamentos que podem indiciar corrupção.” Já agora, podiam ser alargadas à comunidade em geral, nomeadamente com campanhas públicas. Ainda há muito boa gente a pensar que tem de dar uma ‘nota’ ou algo mais a um funcionário público para resolver um problema.

Outra boa ideia é o aumento da transparência que se pode conseguir com a expansão do “registo central do beneficiário efetivo” de sociedades com ações ao portador ou outras formas jurídicas opacas. Ou a criação de uma pena acessória para os titulares de cargos políticos condenados por corrupção, o que, através de decisão judicial, poderá impedir a sua eleição ou nomeação para cargos políticos ou públicos — o mesmo se diga de igual pena acessória para os gestores que poderão não ter idoneidade para exercer cargos de gestão.

O problema destas duas últimas propostas é que estão a restritas ao crime de corrupção (que em 2014/2015 e 2015/2016 apenas teve 29 arguidos condenados em todo o país). É fundamental que essas propostas englobem os crimes conexos como a participação económica em negócio, tráfico de influência, peculato, abuso de poder, recebimento indevido de vantagem ou até mesmo fraude fiscal e branqueamento de capitais. Isto desde que os crimes tenham sido praticados no exercício de funções políticas ou públicas.

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Já expliquei aqui que o PS não quer lutar contra a corrupção. Uma vez mais, o Programa do XXII Governo Constitucional vem confirmar essa ideia. Como é óbvio, a luta contra a corrupção não pode ser feita única e exclusivamente com medidas preventivas. Particularmente, quando o sistema de justiça português é conhecido pela sua lentidão. A principal causa dessa ineficiência prende-se com a opção de construção de um sistema super garantista que, tal como diz o professor Nuno Garoupa, “minimiza a possibilidade de condenar os inocentes mas também inibe a condenação de muitos culpados.”

Se o PS de António Costa quisesse, de facto, combater a corrupção e corresponder aos sucessivos apelos do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa nesse sentido, as medidas a tomar deviam ser as seguintes:

  • criar um tribunal de competência especializada e com jurisdição nacional que julgue os processos de criminalidade económico-financeira e altamente organizada que são alvo de pronúncia no Tribunal Central de Instrução Criminal. Seria um verdadeiro sinal para o país numa aposta séria no combate à corrupção, através de um sistema em que o know how é especializado, e não generalista, e em que os magistrados que julgam têm o mesmo grau de conhecimento sobre as matérias em julgamento que os procuradores e os advogados. O nosso sistema já tem o Tribunal de Concorrência, Regulação e Supervisão que reúne essas características e tem dados bons resultados.
  • cumprimento da pena de prisão após a consolidação da matéria de facto e a confirmação da mesma em segunda instância. O nosso sistema penal já restringe a possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça para casos com penas superiores a 8 anos, sendo que o Supremo só aprecia matéria de direito — e não matéria de facto.
  • Criação do instrumento de colaboração premiada e de outras formas de direito premial. O nossos sistema penal já permite formas de direito premial no combate à criminalidade associada ao tráfico de estupefacientes. Porque razão o mesmo sistema não pode ser alargado aos crimes de corrupção e a outra criminalidade económico-fianceira conexa, permitindo assim a obtenção de prova documental dos esquemas criminosos?
  • revisão do sistema de expedientes processuais que permitem a interposição de reclamações, nulidades e outro tipo de manobras dilatórias que são um obstáculo a sistema eficiente de recursos.

Estas, sim, permitiriam a construção de uma justiça rápida, eficiente e justa que sanciona quem prevarica. A prisão preventiva de José Sócrates por corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais e as penas definitivas de prisão aplicadas a Isaltino Morais por fraude fiscal, a Armando Vara por tráfico de influência e a Duarte Lima por burla e branqueamento de capitais fizeram mais pela credibilidade da justiça e pela perceção de uma justiça igual para todos do que 1.000 medidas preventivas iguais às que António Costa quer agora aplicar.

5 Ter uma magistrada com o calibre de Francisca Van Dunem como ministra da Justiça dá esperança de que a estratégia para lutar contra a corrupção não se vai resumir exclusivamente às propostas que constam do Programa do Governo. Ao entrar para o seu segundo mandato, Van Dunem tem todas as condições para deixar uma marca na Justiça. Esperemos que consiga atingir esse objetivo. O país agradece.