Muito se tem dito e escrito a propósito do famoso acórdão relatado pelo Desembargador Neto de Moura. Sendo o acórdão insuscetível, nos termos da lei, de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, várias vozes salientaram que o mesmo não seria impugnável perante o Tribunal Constitucional (TC). Os Portugueses foram assim confrontados – à bruta – com uma das características do seu sistema de fiscalização da constitucionalidade. Não há recurso para o TC português quando em causa esteja (apenas) a eventual inconstitucionalidade de uma decisão judicial. Este é ponto assente e claríssimo. O TC constitui, entre nós, um juiz do legislador (isto é, um juiz das leis, que aprecia a constitucionalidade da legislação aplicada pelos tribunais) e não um juiz dos restantes juízes.

Esta característica tem sido apontada por reputados académicos como uma insuficiência do sistema português no que toca à tutela dos direitos fundamentais dos particulares. É interessante, contudo, lembrar que não somos propriamente caso raro, países como a Itália ou a França padecem da mesma “insuficiência”. Por outro lado, esta ausência não significa que, entre nós (como sucede designadamente nestes dois países) os indivíduos se encontram afastados do acesso direto ao TC: esse acesso é garantido através do recurso de constitucionalidade que interpela, no âmbito de uma causa concreta, o TC precisamente na sua função de “juiz do legislador”.

O exemplo dado pelo recente acórdão da Relação do Porto não é, no entanto, o melhor argumento para quem queira defender, em Portugal, a existência de um outro mecanismo de acesso dos particulares ao TC. É que nos países que conhecem meios de impugnação de decisões judiciais com fundamento em inconstitucionalidade, tais mecanismos conhecem, com geometria variável, requisitos muito apertados para que o caso possa “entrar” no respetivo tribunal constitucional. Por exemplo, no caso do recurso de amparo, em Espanha, ou da “queixa constitucional”, na Alemanha, os filtros de acesso ao tribunal constitucional são bastante exigentes, desde logo para garantir a eficiência do funcionamento do próprio tribunal. Como parece óbvio, a manutenção da confiança e reconhecimento públicos na ação do TC depende, desde logo, da sua capacidade de produzir decisões bem fundamentadas e ponderadas. Isso só é possível com um sistema funcional de filtros que possa evitar que o TC se torne vítima do seu próprio sucesso e se veja incapacitado de responder aos apelos que, legitimamente, os cidadãos e outros interlocutores lhe dirigem.

As considerações aberrantes do referido acórdão relacionadas com o adultério da vítima relevam, no contexto próprio da decisão, a dois títulos: em primeiro lugar, elas surgem para justificar a não censura da decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância, que havia considerado que o agressor marido, na medida em que se encontrava, à data da prática dos factos, em quadro de depressão motivado pelo adultério, havia atuado com culpa especialmente atenuada; em segundo lugar, as mesmas não são o seu fundamento (em linguagem técnica, a sua ratio decidendi), tratando-se, antes, de considerações laterais ou, em juridiquês, de obiter dicta.

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São considerações profundamente infelizes e discriminatórias. Mas que não restem dúvidas: o fundamento da decisão não reside nas mesmas. Por isso, dificilmente um caso deste tipo preencheria – apenas com fundamento nas ditas considerações – os pressupostos apertados que os diversos sistemas consagram para o conhecimento de “queixas constitucionais” ou “recursos de amparo” contra uma decisão judicial.

Já não é o caso de outras decisões judiciais recentes, também elas alvo de polémica, que têm vindo a lume: trata-se de diversos acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa que, confirmando decisões de 1.ª instância, têm considerado não existir qualquer inconstitucionalidade nas deliberações do Banco de Portugal relativas à resolução do BES, designadamente aquelas que excluíram a passagem para o Novo Banco das obrigações subscritas pelos chamados lesados do BES. Estas decisões judiciais avaliam uma eventual inconstitucionalidade de atos administrativos – as deliberações do Banco de Portugal. Ora, em Portugal, tal como o TC não é um “juiz dos juízes”, também não é um “juiz da Administração”. Por isso, decisões judiciais deste teor ficarão sempre, em princípio, à porta do TC, a não ser que a fundamentação da decisão e/ou a argúcia dos advogados consiga(m) extrair da lide um problema de constitucionalidade normativa, o que, para utilizar um eufemismo, nem sempre é tarefa simples.

E aqui reside o que parece ser o inescapável paradoxo do nosso sistema: é que sendo o Tribunal Constitucional visto, pelos cidadãos, como o último garante dos seus direitos fundamentais (recorda-se dos cartazes e t-shirts que se viam nas manifestações anti-austeridade em que se liam frases como “I love TC” ou “Viva o Tribunal Constitucional”?), como lhes explicamos que se a ação tiver por objeto, precisamente, uma questão de violação dos seus direitos mais básicos, ela provavelmente não passará o portão do Ratton?

Constitucionalista e Investigadora da Universidade Johann Wolfgang Goethe de Frankfurt