Falo de vez em quando ao telefone com uma velha amiga grega, especialista da imagem da Grécia antiga na literatura europeia dos séculos XVIII e XIX e cidadã de Atenas. Sempre foi vagamente marxista (tendência althusseriana), mas nos últimos tempos virou à direita e em Janeiro deste ano votou na Nova Democracia. Conhecendo de perto a gente do Syriza, antecipou o caos que aquilo traria. Claro que a viragem à direita lhe trouxe problemas (na universidade, por exemplo), mas, como o mundo é complicado, ainda vêm amigos votantes do Syriza (alguns aspirantes a ministros) chorarem-lhe em privado a traição burguesa de Tsipras e a cedência a Merkel.

Dia cinco de Outubro telefonei-lhe a contar os resultados das nossas eleições. Eu estava muito ufano dos meus compatriotas por, apesar das provações destes últimos quatro anos, terem sabido pensar direito e dar a vitória a Passos Coelho e Portas. As coisas melhoraram e melhorariam mais, pouco a pouco, etc. E ela invejou-me por os portugueses não terem sucumbido à loucura dos gregos e ambicionado mudar radicalmente, de um só golpe, a estrutura da União Europeia. Um quarto de século (meu Deus!) de conversas sobre a natureza profunda de Portugal e da Grécia conhecia aparentemente um momento alto com uma vitória da pátria de Camões. Nem imaginava eu o que se preparava. Ó ingenuidade! Ó humanidade!

Por estes dias, tem-me dado – como, aposto, a muita gente – a vontade de ser rico e cínico. Rico, para não ter grande necessidade de pessoalmente me preocupar com as catástrofes que aí vêm e que incluem, com uma probabilidade extrema, o regresso da troika, desta vez mais feia e dura do que da anterior. Cínico, para poder gozar com a coisa e com os mais que mil detalhes grotescos que os próximos meses (quantos?) nos trarão, por culpa exclusiva de um indivíduo politicamente muito pouco recomendável chamado António Costa. Infelizmente, não sou uma coisa ou outra, e duvido que a mais do que inverosímil obtenção do primeiro estatuto me conduzisse ao segundo, e o que me vai acontecer é mesmo andar a sofrer enquanto reinar a loucura que se avizinha, que já está quase aí.

Por isso, já nem sequer me consigo rir ao ler essa conversa toda do sonho e da esperança, do sonho que já nos tínhamos esquecido de sonhar, da esperança que já tínhamos desesperado de esperar, e por aí adiante. Não é por causa da infantilidade desse tipo de discurso, embora isso também irrite. Que raio de gente é essa? Em que mundo é que vivem? De que péssimo romance saíram? Acham que o mundo, entusiasmado com tão belas emoções, nos vai salvar? Não, o problema com essa conversa é que o ridículo dela traz consigo a possibilidade muito séria da catástrofe, é um das causas adjuvantes possíveis da catástrofe. Quem pensa dessa maneira, quem pensa como se a realidade fosse a satisfação de um estado de alma, só pode dar uma ajudinha à inconsciência e militar na irresponsabilidade. 

Na irresponsabilidade de António Costa, neste caso. O que António Costa fez foi subverter a realidade política, ao destruir o sentido que as pessoas dão ao acto de votar. É preciso ir ao essencial. As pessoas votam esperando que o partido, ou coligação, em que votam, se ganhar, forme governo, eventualmente aliando-se com outros partidos. Ou, perdendo, que vá para a oposição, eventualmente podendo participar no governo, com um estatuto subalterno relativamente ao partido vencedor. Tão simples quanto isso. Os argumentos contrários a isto sofrem de uma contra-intuitividade notória e soam irremediavelmente artificiais. António Costa destruiu o sistema de expectativas que nos fazia dar sentido – um sentido real – ao acto de votar. A situação que se vive é uma situação de sem-sentido que só pode gerar o pior. E, no mesmo gesto, António Costa desfez o que sobrava de pudor, de respeito mútuo, na política portuguesa. Enquanto ele durar no poder, a nossa vida vai ser um longo fim de semana perdido, do qual sairemos muito amachucados.

Não tenho vontade de rever o The Lost Weekend de Billy Wilder. Para sofrimentos, basta o que vem aí. Em contrapartida, descobri uma boa maneira de escapar às tristezas da pátria. Já comecei a praticar, e os resultados, até agora, foram pagantes. Para falar simplesmente, estou em vias de me transformar num dos maiores especialistas nacionais de comédias italianas dos anos sessenta. Comecei inocentemente com alguns filmes com o Vittorio Gassman e o Alberto Sordi e a partir daí aquilo colou-se-me à pele. Não me lembrava da extraordinária capacidade daqueles filmes para escaparem à grosseria, aí onde até alguns dos maiores falharam. Mesmo filmes sobre as duas grandes guerras conseguem conciliar um horror filmado sem disfarce algum e uma graça excelente, o que deve ser das coisas mais difíceis do mundo. Ora, que melhor antídoto para as nossas preocupações do que este? E, agora que estou a escrever isto, lembrei-me de um filme com o Alberto Sordi que já não vejo há muito tempo.  Vai ser o próximo. O título? Il Prof. Dott. Guido Tersili primario della clinica Villa Celeste convenzionata com le mutue. Revê-lo vai ser mais uma vitória pessoal sobre a Frente de Esquerda, um manguito sob forma de gargalhada. Viva Italia!

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