Nas primeiras décadas do século XX associava-se uma expressão aos políticos socialistas britânicos que vinham de famílias da classe alta: vote labour, sleep tory. Irredutíveis defensores da socialização dos meios de produção (era assim o socialismo antes do colapso da União Soviética, é bom lembrar, que agora há muito socialista saudoso dessa pureza ideológica), viviam em consonância com os seus ideais: habitavam nos bairros chiques de Londres ou nas suas casas ancestrais no campo, frequentavam socialmente apenas os seus pares da pirâmide social, cumpriam todos os rituais upper-class e – daí a expressão – para o adultério escolhiam as senhoras casadas da mesma classe social.
Não conheço muito bem o atual socialismo europeu, mas nós temos em abundância gente de esquerda em permanente dissonância cognitiva entre as suas ideias e o seu estilo de vida.
Podia citar José Sócrates, esse ídolo da ala esquerdista radical do PS veneradora da santa Justiça Social, que afinal (segundo as notícias) paga um magro ordenado de 600€ ao motorista. Mas interessa-me levar o argumento para questões de género, pelo que prefiro ilustrar com Raquel Varela e Isabel Moreira este ‘votar à esquerda, viver à direita’ (escolho ‘viver’ porque, graças aos deuses, não sei com quem dormem – ainda que tenha algum temor de que Isabel Moreira um dia destes resolva informar disso o facebook e eu acabe por apanhar involuntariamente a informação).
Houve por estes dias uma pequena polémica no facebook à volta de um restaurante caro onde ambas jantaram, tendo sido comentado como estas figuras cimeiras da esquerda nacional praticavam refeições demasiado caras para os rendimentos médios portugueses. E a isto Raquel Varela deu uma resposta muito curiosa. Passemos por agora por cima do tom sobranceiro e snob com que Varela comentou o primeiro-ministro (‘com o seu fato de alfaiate de segunda, morador suburbano’), que o texto sobre os snobs de esquerda fica para outro dia.
Centremo-nos nas palavras de Raquel Varela para descrever o socialismo: ‘Socialismo é liberdade e abundância, se falta uma delas então não é socialismo, é outra coisa’.
Paradoxalmente, linhas depois de ter descrito o socialismo como ‘liberdade’, Varela prescreve ‘socializar’ propriedade para resolução dos problemas do país. Ora bem, socialismo é liberdade desde que não seja liberdade de deter propriedade privada sem depender da arbitrariedade do estado, nem liberdade de cada um usufruir dos resultados monetários (avultados ou não) do seu trabalho ou das aplicações do seu capital. Socialismo é liberdade mas só liberdade q.b. e basta muito poucochinho.
Talvez a liberdade económica não seja importante para Raquel Varela, mas estou certa que a liberdade de usar colares e lenços e de ir ao cabeleireiro e de usar maquilhagem lhe é cara. Aproveito, portanto, para a informar – com coração pesaroso porque estou certa que será uma surpresa funesta – que o socialismo, onde implementado, também não ficou conhecido pela afeição à vaidade feminina. Na verdade, combatia-a. Os preparos (agradáveis) em que Isabel Moreira e Raquel Varela se apresentaram no seu jantar seriam apelidados, numa sociedade socialista, de decadentes, burgueses, capitalistas, individualistas, reacionários. Tudo pecados que na China ou na União Soviética presenteavam com regularidade pessoas ao gulag ou ao campo de reeducação pelo trabalho.
A outra palavra de Varela para o socialismo – ‘abundância’ – é ainda mais pertinente, tanto mais que se trata de uma historiadora e saberá certamente que, em todos os países onde o socialismo foi experimentado, o que resultou foi mesmo a escassez – só por acaso o contrário da abundância. A ilusão de Raquel Varela com a abundância socialista fez-me lembrar o entusiasmo de Mao Zedong quando lançou o Grande Salto em Frente em 1958, esse radical movimento de socialização da agricultura, prometendo que os chineses teriam cinco refeições diárias em consequência de tal política e que os excedentes alimentares (porque claro que sobraria comida) seriam doados a países pobres. O resultado do Grande Salto em Frente, números do académico Frank Dikotter, foram 45 milhões de mortos por abundância – mas abundância de fome. (Não vale a pena lembrar também o Holodomor, o genocídio de ucranianos por Lenine, ou vale?)
Enfim, eu aprecio muito a vaidade e os cuidados que têm consigo próprias de Raquel Varela e Isabel Moreira. Desta vez não estou a ser irónica. Aprecio porque quebram o cinzentismo estético que se exige às mulheres na política (que é mais um assunto que fica para outro dia). Mas aprecio sobretudo porque asseguram que o seu socialismo é de faz-de-conta. Isabel Moreira e Raquel Varela – e as outras mulheres de esquerda igualmente coquetes – só aceitam um socialismo que não lhes perigue os armários de sapatos. E isso o meu armário de sapatos apoia com toda a veemência.
Que tenham um Natal feliz, livre e abundante.