Não foi surpresa o delírio e o deleite de parte da direita portuguesa com a revolta dos ‘coletes amarelos’ em França. Não é a primeira vez que escrevo das afinidades que a nova direita populista tem com o comunismo, tanto nos processos, como na imoralidade (o famoso e infame ‘os fins justificam os meios’ ou o uso e abuso de desinformação e propaganda), como no conservadorismo social.
De resto há um livro recente – e, aviso, este texto fala de livros e fala de classe – muito curioso que dá pistas para a passagem do comunismo para a Frente Nacional que os trabalhadores industriais e suas famílias fizeram numa cidade francesa. Retour à Reims (li a tradução inglesa), de Didier Eribon, permite-nos perceber que a viagem não foi assim tão grande. E também outra realidade, menos explícita e mais insidiosa: em Paris – tanto para as pessoas com que se relacionava como para o próprio autor – era muito mais fácil a aceitação da homossexualidade de Eribon do que a sua origem de classe trabalhadora. Mesmo nos meios progressistas de esquerda que, claro, tinham sempre o proletariado no coração (desde que não se relacionassem socialmente com ele, cruz credo, que seria?).
Porém, dizia, não surpreendeu que parte da direita delirasse e batesse palmas com a violência irredutível dos protestos em França. Esperam até que a violência não pare e seja destrutiva para as instituições francesas. Exatamente como Mário Soares e amiguinhos, durante o período de ajustamento, esfregavam as mãos de esperança que alguém agredisse o primeiro-ministro ou Presidente da República e justificavam as montras partidas e outras violências que ocorriam depois das manifestações da CGTP.
No entanto, o meu texto não é sobre esta parte da direita que a mim não me interessa (se não como fenómeno perigoso a analisar) e com a qual tenho tanto em comum como com os autóctones da Papua Nova Guiné. É mais útil questionar de que forma a direita que sobra tem resposta para os tempos atuais. Porque, hélas, os assuntos de discussão de há dez anos estão ultrapassados e insistir neles será tão proveitoso como a negação setecentista de Jorge III quando perdeu a sua colónia americana.
E uma das realidades do mundo atual para que a direita tem de olhar é a desigualdade social e económica dentro de cada país. A alegação ‘a pobreza é que importa combater, a desigualdade é indiferente, não empobrece ninguém’ já não cola. Ou que, a certo nível, a desigualdade é justa – de facto reflete diferenças de talento, inteligência, arrojo.
Há uns tempos, nas Conferências de Lisboa, num painel sobre globalização, um dos oradores, Montek Ahluwalia, referia como o fenómeno ‘winner takes all’ se tem reproduzido, provocando desigualdade ao favorecer quase só o dito vencedor sem que haja, na verdade, grande diferença de mérito entre este e o segundo, terceiro, quarto, etc. Dizia também que as pessoas só aprovam a globalização se sentirem que ganham alguma coisa com isso e, mesmo ganhando, se não veem outros ganharem desproporcionadamente mais.
O ponto é este, e não apenas nos fenómenos relacionados com a globalização (que, para mim, tem largos ganhos para o mundo, o que não implica que não necessite de correções significativas). Há quem, nas últimas décadas, tenha ganho desproporcionadamente mais que os restantes, e torna-se difícil argumentar que a desproporção se deve a mérito ou genialidade – em vez de ser somente consequência da organização dos mercados. Nenhum país escapa a esta voracidade. E não vale a pena a direita não populista e não revolucionária querer explicar que afinal todos ganham e não há problema se uns ganham duas unidades e outros ganham três triliões. Afinal não somos comunistas, não acreditamos na construção do homem novo; as políticas e sistemas ou se adequam à natureza humana ou são inúteis e perniciosos. As pessoas não veem justiça neste resultados e, em boa verdade, não existe.
De facto, torna-se difícil apresentar como normal e bom, para mim, pessoa de direita, o que se passa com Jeff Bezos e a Amazon. Bezos é o homem mais rico do mundo e de sempre. Depois lemos o livro Hired, de James Bloodworth, que passou um mês a trabalhar no centro de distribuição da Amazon em Rudgeley. Um local distópico, onde os trabalhadores – mal pagos – são constantemente controlados se andam suficientemente depressa pelo armazém ou não, não têm tempo de ir à casa de banho, são permanentemente lembrados que estão a ser pouco produtivos, demoram mais tempo a chegar à cantina do que a almoçar (e a comida quente acaba depressa). Trabalhadores temporários, angariados por uma empresa que lhes dá falsas informações e faz chico-espertices para não pagar partes dos rendimentos. Ficar doente é malvisto e leva sempre a despedimento, mesmo se por poucos dias e com atestado médico e se, fora este atentado sanitário, a avaliação é impecável.
Lamento, mas não consigo defender esta divisão da riqueza gerada pela Amazon. Nem o homem mais rico do mundo que tem na base da pirâmide pessoas a quem não é permitido ir à casa de banho ou apanhar uma gripe. Bezos é um liberal americano, dono do Washington Post – que faz um meritório trabalho de escrutínio político – mas é esta sobranceria de grandes bilionários que gera revoltas com ‘o sistema’ e alimenta produtos tóxicos políticos (vem-me à ideia esse outro dono do sistema, ainda que muito menos talentoso, Donald Trump).
O mesmo James Bloodworth tem outra preciosidade livresca: The Myth of Merithocracy. O autor é de esquerda, mas dos que tem a cabeça (bem) organizada. Já escreveu na direitolas The Spectator. Neste livro, além de mostrar os factos que escancaram que a mobilidade social é mais difícil em países com grandes níveis de desigualdade e como a permanência na working class se tende a reproduzir geracionalmente, refere ainda um curioso conceito: o social class pay gap. Para o mesmo trabalho, os que vêm de classes sociais baixas recebem menos 25% do que os que vêm de meios privilegiados. Apostaria que se reproduz em Portugal.
Este social class pay gap é em tudo semelhante ao gender wage gap, o mesmo para as causas. Por um lado, a convicção intrínseca (e inconsciente, geralmente) de que não é preciso pagar tanto a mulheres e pessoas de meios pobres: afinal nem estão habituados a isso. Por outro lado, os empregadores e chefes tendem a valorizar mais (incluindo financeiramente) e a escolher para os melhores lugares quem tem mais semelhanças consigo próprios. É um fenómeno humano: para nos reforçamos valorizamos noutros aquilo em que nos são parecidos.
Não deixa de ter piada que os maiores negacionistas do gender wage gap (homens que têm que fazer pela vida e não podem ter contemplações com a concorrência) sejam, com frequência, os alvos deste social class pay gap. Porque, sim, claro que os empregadores e chefes tendem a escolher e valorizar quem se veste com os códigos certos, quem sabe fazer conversa (e o tipo correto de conversa), sabe estar e tem maneiras, frequenta os mesmos locais, estudou no mesmo tipo de colégios ou escolas de topo, (quem tem o mesmo sexo) e um longo etc.
Questões difíceis, eu sei. O mais fácil é irmos ali incendiar uns carros e grafitar os Jerónimos, que se resolve tudo a correr.
(O título é um descarado roubo ao What’s Left?, do mago Nick Cohen.)