O início de 2022 viu a chegada inesperada de Zelensky à defesa do Ocidente. O fim do ano foi marcado pela morte de Bento XVI. Ambos acusam o Ocidente de não acreditar nos seus próprios valores: Zelensky na liberdade humana, Bento na tradição judaica-cristã que está na base da matriz liberal.
Em cima da mesa está o facto de a competição com a China e a Rússia serem, para além da Ucrânia e de Taiwan, sobre a substituição dos valores do Ocidente pelos sistemas de valores de Xi e Putin. Por isso, Zelensky e Bento acusam as populações do Ocidente de se terem tornado moralmente brandas e politicamente desligadas de qualquer crença firme nos valores democráticos liberais. Bento dizia que a Europa tinha um estranho “ódio a si própria“, e acusava-a de ser uma “apostasia de si mesma, mesmo antes [de ser um apóstata] de Deus“, ao ponto de “duvidar da sua própria identidade“.
Pode parecer irrealista alistar o falecido Papa para a competição com a China e a Rússia.
Mas, tal como Zelensky, Ratzinger é o homem do momento. A campanha que levou a cabo durante o seu papado para restabelecer as bases da cultura ocidental foi marcada pela sua defesa da unidade entre razão e fé, religião e política. O enredo da história europeia que explicitou no discurso ao Senado Italiano em 2004 “Europa: Os seus Fundamentos Espirituais” via a afinidade eletiva do cristianismo com a democracia liberal como a matriz essencial da identidade da Europa Ocidental.
Ratzinger atribuiu os fundamentos da Europa moderna a um “sentido emergente de auto-consciência que expressava uma consciência de finalidade e de missão“. Para Ratzinger, os valores liberais, apesar de serem de natureza universal, são também especificamente europeus, e, por isso, não podem ser devidamente compreendidos para além da tradição cristã: “O valor, dignidade, liberdade, igualdade e solidariedade do homem que é implícito nas afirmações básicas da democracia e do Estado de direito implica uma imagem do homem, uma opção moral e uma ideia do direito, que não é de modo algum óbvio“. Por conseguinte, o reconhecimento da origem divina destas ideias através da revelação é a própria “força espiritual constituinte” da Europa.
Apesar de ser pessimista e ver a morte da civilização ocidental como provável, Ratzinger falava da possibilidade da emergência de uma “minoria criativa” que encontrasse formas de reverter o declínio. No seu último ano de vida Ratzinger certamente viu a guerra na Ucrânia e a emergência do seu líder como uma brecha que abre essa opção.