A quinta-feira foi de nervos para os lados da coligação. Nas equipas de Passos Coelho e Paulo Portas instalou-se a preocupação com a estratégia de António Costa: está o líder socialista a fazer bluff ou coloca mesmo a hipótese de fazer governo com o apoio do Bloco e do PCP? E daí que as últimas horas antes do encontro desta sexta-feira, que junta os três líderes na sede do PSD, se tenham passado a analisar até onde podem ir os recuos, procurando o acordo com os socialistas. Há várias pistas, mas já lá vamos (mais abaixo). É preciso, antes, sublinhar um ponto: o mote da reunião já deixou de ser o apelo de Cavaco Silva a um acordo amplo para a legislatura – passou a ser a garantia de que será a direita a governar e não uma aliança à esquerda.
Nos bastidores da política portuguesa entrou uma palavra vinda da Dinamarca. “Borgen” é a série onde os partidos negoceiam alianças improváveis, em jogos políticos de bastidores – e é também uma das preferidas do líder do PS. Estamos no Borgen, mas o Borgen joga-se atrás das cortinas — dizia um dos que, na coligação, se preocupam em preparar o próximo passo, sem certezas de até onde podem ir os socialistas neste jogo mais à portuguesa.
“A questão é se o Costa dá um prémio maior ao facto de poder ser primeiro-ministro, talvez segurando assim a liderança do partido; ou se tenta reconstruir a sua imagem como o homem dos compromissos políticos”, interrogava-se um social-democrata ouvido pelo Observador. Interrogando-se, procurou respostas entre as pontes que conseguiu no PS. “Mesmo lá, muita gente não sabe se é estratégia ou se ele coloca mesmo essa hipótese”. E lá vem a dúvida de novo: “Será que ele [Costa] acredita que pode fazer do Bloco de Esquerda uma espécie de novo Syriza – não o anterior, mas o que saiu do terceiro resgate?”.
Como seria previsível, a aliança PS-BE-CDU é vista à direita como um perigo. Nas relações com Bruxelas, por onde têm de passar muitas decisões do país; também pelas “leituras externas”, que podiam levar a um renascer da desconfiança sobre o país e um “disparo nas taxas de juro”, alega a mesma fonte.
Na dúvida, Passos Coelho e Paulo Portas fecharam-se ontem a procurar estratégias de abordagem, sabendo que Costa leva a mesma equipa que foi à sede dos comunistas (Carlos César, Mário Centeno e Pedro Nuno Santos). Desde domingo que se sucedem os pequenos passos para abrir as portas a objetivos do PS. O maior dos quais ficou escrito (e assinado) no acordo de Governo PSD-CDS: vago nas propostas para a governação, integrou os quatro princípios que Costa anunciou como centrais na noite eleitoral — “defesa e reforço do Estado Social”, “promoção da competitividade da economia”, “investimento privado e inovação”, compromisso europeu. A questão chave é saber como concretizar isto em propostas. Dito de outra forma, saber o que precisa a direita de dar a Costa que o convença (a desistir de formar governo à esquerda e a aprovar, pelo menos, o primeiro orçamento da legislatura).
Ouvindo alguns sociais-democratas e centristas, o Observador chegou a uma lista de possibilidades que passaram nestes dias pela mesa da coligação. Alerta: não é certo que sejam as condições que a direita tem para oferecer ao PS, mas são todas hipóteses sustentadas na lógica política dos dois partidos. Aqui estão:
- Plafonamento da Segurança Social. Foi uma das propostas da direita mais criticadas por António Costa. E é hoje vista como prescindível dentro dos partidos. Marcadamente ideológica, a ideia tinha pouco efeito prático – só seria aplicada a novos trabalhadores, com um teto demasiado alto para que, no curto prazo, tivesse qualquer efeito na sustentabilidade da Segurança Social. Estando a direita em minoria, nunca avançaria de todo o modo.
- Cheque educação e escolas independentes. Mais um ponto cheio de carga ideológica colocado no programa PSD/CDS que pode cair facilmente. Nem no CDS, partido que é forte defensor da medida, as propostas parecem ser consensuais, tendo em conta a resistência de alguns colégios privados em aceitar a primeira.
- Pensões. Passos colocou 600 milhões de euros de poupanças no Programa de Estabilidade, depois garantiu na campanha que não haveria cortes em pensões a pagamento. Ainda aceitou mais: a ideia de diversificação das fontes de financiamento da Segurança Social, colocada em cima da mesa pelo PS. Há meio caminho andado e, à direita, ninguém acredita que seja obstáculo a um acordo.
- Feriados. O prazo para a reavaliação dos feriados cortados (começando pelos negociados com o Vaticano) era 2017. Mas no programa da coligação foi antecipado para 2016. Costa, já se sabe, quer uma reposição imediata. E também não será por aí que a direita se incomode.
- IVA da restauração. Costa prometeu a reposição da taxa de 13% – e no CDS tem alguns apoios (chegou a ser veementemente defendida em Conselho de Ministros por Portas e Pires de Lima). O PSD é quem mais resiste – mas o preço da medida (300 milhões de euros/ano) pode não ser excessivo, dando um argumento forte a Costa para sair como vencedor.
- Política de rendimentos. Pode ser uma surpresa, mas o PSD e o CDS podem estar dispostos a rever o calendário de devolução dos salários da função pública (que prevê fazer em 4 anos, contra os 2 do PS). A ideia é não só dar argumentos ao PS para aceitar um acordo, como fazer valer esse acordo de três partidos para convencer o Tribunal Constitucional de que há amplo acordo político no novo calendário, evitando um novo chumbo.
- Reforma laboral. A proposta de Mário Centeno, o economista que preparou o programa socialista, foi secretamente elogiado em alguns setores da coligação, sobretudo no novo regime conciliatório para despedimentos – visto como uma aproximação à flexissegurança, seguido em países nórdicos que tentam conciliar mais flexibilidade com elementos que garantem a segurança no trabalho. É polémico, foi até criticado por Passos e Portas como “excessivamente liberal”. Mas isso, à direita, não é necessariamente um problema. Embora para os sindicatos possa vir a ser.
- Combate à precariedade. Outra ideia bandeira do PS, que ganhou surpreendentemente o apoio do PSD de Passos: encontrar um modo de combater a precariedade contratual no setor privado. O PS prefere penalizar quem tem mais rotatividade de trabalhadores, Passos uma redução da TSU para quem mais contrate sem prazo.
- Salário Mínimo. PSD e CDS prometeram revisitar o dossiê em concertação social já no próximo ano. O PS promete um aumento (sugerido por Costa acima dos 520 euros, mas não colocado no programa). Uma vez mais, a direita está aqui perante um facto consumado – ou negoceia com o PS, ou o PS pode aprovar um valor indicativo na AR com PCP e Bloco. Vale mais negociar.
- Modernização do Estado & descentralização. Áreas com vários pontos em comum nos programas dos dois partidos – e reconhecidamente importantes.
- Nomeações. Há uma lista grande de cargos por nomear – e importante. Da Presidência da Assembleia da República, passando por vários juízes que estão de saída do Tribunal Constitucional, até à presidência da CGD e da CMVM. Na legislatura anterior, a maioria fez como quis – com queixas de António Costa. Agora terá de ser necessariamente diferente.
- Europa. Foi das matérias mais discutidas entre os dois líderes nos debates, mas nem por isso com grandes afastamentos de princípio. Passos fez já propostas em Bruxelas que servem para enquadrar a revisão dos mecanismos do euro e no PSD acredita-se que pode ser fácil chegar a acordo com Costa em vários pontos. Seria uma espécie de ramalhete, a valorizar a essência do acordo – um país comprometido com a moeda única.
Chegados aqui, a verdade é que as dúvidas na coligação são grandes. Dúvidas sobre o que quer António Costa para chegar a um acordo. Dúvidas sobre até onde o líder socialista pode ir em alguns temas que lhe foram centrais na campanha eleitoral. Como a alegação de que as contas do Orçamento precisam de um retificativo, sobre os riscos do Novo Banco, sobretudo a ideia de reforço dos apoios sociais (anulação dos cortes feitos no Rendimento Social de Inserção e do Complemento Social para Idosos) e de que a economia precisa de um “forte estímulo” de rendimentos, como a redução ampla da TSU que foi muito criticada por Passos.
Sociais-democratas e centristas olham também com atenção para aquelas que são as opiniões dos socialistas que têm lugar em S. Bento e que vão ter que votar o Orçamento do Estado. O receio é de que haja uma cisão entre a direção de Costa e alguns deputados, que podem vir a ser decisivos para negociar o Orçamento se não houver acordo institucional entre os partidos. “O PS já não tem uma solução fácil. Pode estar à beira da cisão”, diz ao Observador um dirigente do CDS.
As dúvidas, porém, só começarão a ser esclarecidas esta sexta-feira, na São Caetano à Lapa.