Mais consolidação, mais impostos, menos economia. O Governo conseguiu que a Comissão Europeia não chumbasse a proposta de Orçamento do Estado para 2016, mas para isso teve de avançar com mais 910 milhões de euros em medidas na proposta face ao que se propunha há duas semanas e reviu as suas previsões para a economia. Bruxelas já avisou que quer mais até à primavera, Mário Centeno diz que está concentrado no plano A.
O primeiro Orçamento do Estado do Governo de António Costa começou a ser desenhado cedo, há vários meses, quando um grupo de peritos ligados ao partido criou um programa económico. Nesse grupo estavam vários membros ligados ao atual Governo: Mário Centeno, José Vieira da Silva e Manuel Caldeira Cabral são agora ministros, Rocha Andrade e João Leão são dois dos secretários de Estado de Mário Centeno, e Vítor Escária é assessor económico de António Costa.
O programa sofreu várias evoluções ao longo do tempo, mas o maior embate foi com a Comissão Europeia. Bruxelas esteve meses a exigir um esboço do Orçamento do Estado para ser avaliado à luz das regras do semestre europeu e o Governo decidiu corresponder. Nas semanas que antecederam o desenho deste esboço, o Executivo já tinha negociado alterações e cedeu duas décimas em relação ao défice que previa: em vez de cair para 2,8%, iria agora cair para 2,6% do PIB.
O envio do esboço foi recebido com espanto na Comissão Europeia e criou-se a maior divergência, como assumiu esta sexta-feira o ministro das Finanças. No documento que enviou para Bruxelas, o Governo contabilizava como temporária – ou one-off – a reversão de medidas como a eliminação parcial da sobretaxa de IRS e a reversão dos cortes salariais ao longo deste ano, não contando assim, nas contas do Governo, para agravar o défice estrutural.
Sobre isto, Mário Centeno nada disse publicamente até hoje, nem referiu o tema quando apresentou em Conselho de Ministros o esboço do orçamento, ou, sequer, no dia seguinte, quando convocou uma conferência de imprensa para desenvolver a apresentação do mesmo documento. Depois de uma notícia do jornal Público a dar conta da interpretação do Governo, no mesmo dia a UTAO enviou aos deputados uma análise em que dizia que o Governo estava a “melhorar artificialmente” o défice e que esta forma de contabilização violava as regras do código de conduta do Pacto de Estabilidade e Crescimento.
Bruxelas já tinha exigido formalmente, por carta, explicações quanto ao esforço estrutural, deixando antever um chumbo ao documento. Com uma equipa em Lisboa, dois comissários em permanente contacto com as autoridades portuguesas, a história das negociações resume-se a várias cedências do lado do Governo, que apresentou mais medidas a uma Comissão Europeia intransigente na forma de calcular as medidas como estruturais, mas que cedeu e não chumbou o orçamento, tudo feito à última hora: no final da tarde de quinta-feira, Lisboa e Bruxelas ainda estavam separados por cerca de 200 milhões de euros. O acordo só chegaria de madrugada.
As contas ao défice
Começando do início. O défice orçamental previsto pelo Governo no programa de Governo era de 2,8%. A ideia era a de estimular a economia e, para isso, a estratégia passava por permitir aos portugueses recuperar os rendimentos, com a reversão (mais rápida) de várias medidas do tempo da troika, como a sobretaxa de 3,5% em sede de IRS ou os cortes salariais (estes do tempo do Governo de José Sócrates). E, para isso, não se podia cortar tanto no défice.
A ideia não foi bem recebida em Bruxelas e as negociações começaram ainda antes de haver esboço do Orçamento. O resultado foi uma redução adicional do défice para 2,6%, no esboço, que incluía também uma redução prevista do saldo estrutural de 1,3% do PIB (potencial, a medida para fazer este cálculo) para 1,1% do PIB. Portanto, uma redução de 0,2 pontos percentuais.
Esta redução enfrentou desde o início vários problemas, aos olhos de Bruxelas. O primeiro, a redução estava longe dos 0,5 pontos percentuais de mínimo exigido nos tratados orçamentais. Em segundo lugar, mesmo assim Portugal ainda ficava a 0,6 pontos percentuais do que ficou acordado com o Conselho da União Europeia. E, em terceiro, e o que provocou a maior divergência, é que aos olhos da Comissão estas contas estavam erradas.
As medidas que o Governo estava a considerar como one-off não o eram nas contas de Bruxelas, como não o eram nas contas da UTAO. As contas de ambos diziam que, ao contrário do que dizia o Governo, o défice estrutural não tinha descido em 2015 (ainda com o Governo PSD/CDS-PP), mas sim aumentado, e que iria aumentar ainda mais este ano. Para quanto? 2,1% do PIB, ou seja, a 1,6 pontos percentuais do que estava acordado e um ponto percentual acima da meta que o Governo se propunha a alcançar no final do ano.
Bruxelas exigiu até ao fim mais medidas para, pelo menos, colocar o défice estrutural numa trajetória descendente e não aceitou quase nada do que o Governo considerava como one-off, com exceção de duas transferências que deveriam ter acontecido no ano passado – uma para o Fundo de Resolução Europeu, paga pelos bancos, e outra para uma PPP, de fundos europeus recebidos pelo Estado – que o anterior Governo não transferiu imediatamente, como devia ter feito, e acabou por o ajudar a melhorar artificialmente o défice de 2015 em cerca de 300 milhões de euros.
A avaliação da Comissão Europeia é clara a este respeito: “Os 1,1% do PIB de medidas adicionais consideradas como one-off no DBP [Esboço do Orçamento de Estado, sigla em inglês] inclui, nomeadamente, a reversão dos cortes salariais do setor público e a sobretaxa de IRS (-0,5%), efeitos permanentes que diminuem a receita da reversão de reformas fiscais recentes (-0,5%) e as injeções de capital em empresas públicas, que não se qualifica como medidas one-off de acordo com os princípios de classificação da Comissão”.
O Governo apresentou ao longo dos últimos dias mais 910 milhões de euros em medidas – um total de consolidação adicional de 1.125 milhões de euros face ao que estava no orçamento, algum deste valor via receitas que afinal ficaram acima do esperado em 2015 -, que Bruxelas só viria a reconhecer como estruturais numa parte avaliada em 845 milhões de euros.
O Governo aumentava mais o imposto sobre o tabaco, sobre a banca (que é uma receita puramente contabilística já que o dinheiro vai para o Fundo de Resolução), o imposto sobre veículos, sobre a gasolina e o gasóleo, prometia a saída de mais 10 mil trabalhadores da administração pública e deixava cair uma das suas bandeiras, a baixa da TSU (taxa social única) para os salários até 600 euros.
As medidas adicionais que o Governo prometeu a Bruxelas:
- Poupança com pagamentos antecipados do empréstimo do FMI – 50 milhões de euros.
- Aumento do imposto sobre veículos – 70 milhões de euros.
- Aumento do imposto sobre o tabaco – 100 milhões de euros.
- Aumento adicional (para além do já previsto) no imposto sobre os produtos petrolíferos – 120 milhões de euros.
- Fim da isenção do IMI para fundos de investimento e fundos de pensões – 50 milhões de euros.
- Agravamento da contribuição sobre o setor bancário – 50 milhões de euros.
- Controlo adicional de recrutamento no Estado (só entra um trabalhador, por cada dois que saem) – 100 milhões de euros.
- Novo sistema de controlo de remunerações na Segurança Social – 50 milhões de euros.
- Melhoria no controlo da atribuição de baixas médicas – 60 milhões de euros.
- Não aplicação da redução da TSU para os trabalhadores com salários até 600 euros – 135 milhões de euros.
- Reavaliação do valor patrimonial tributário dos ativos das empresas – 125 milhões de euros.
Em troca, Bruxelas não chumbou o orçamento, mas, ao contrário de muitas informações veiculadas durante os últimos dias, o acordo só chegaria mesmo no último minuto. Na madrugada de sexta-feira, o Governo apresentou mais 135 milhões de euros em medidas e foi esse esforço que permitiu o acordo, como confirmou o comissário europeu dos Assuntos Económicos, Pierre Moscovici, esta sexta-feira em Bruxelas: “É claro que se não houvesse estes 845 milhões de euros não teríamos chegado a acordo, e que se não tivesse havido os 135 milhões, que permitem efetivamente estes entre os 0,1 e 0,2 [pontos percentuais de redução do défice estrutural, e que só chegaram de madrugada] não poderíamos ter estado de acordo”.
A Comissão Europeia, depois da reunião do colégio de comissários, aprovou o Orçamento, mas com reservas. Disse que está em risco de incumprimento, pediu mais medidas no Orçamento ainda antes de este ser aprovado para que cumpra as regras do PEC e avisou que, em maio, vai voltar a olhar para as contas portuguesas para decidir se “convida” novamente o Governo português a tomar medidas.
No final, a discordância continua a ver-se nos números: o Governo diz que, com este acordo, o défice estrutural vai baixar 0,3 pontos percentuais; a Comissão diz que estas medidas só dão para entre 0,1 e 0,2 pontos percentuais de redução.
E a economia?
Acusado desde o primeiro momento de ser otimista, logo pelo Conselho das Finanças Públicas, depois por várias agências de rating, analistas internacionais e, posteriormente, pelo FMI, pelo BCE e pela própria Comissão Europeia, o cenário que o Governo apresentou acabou por ser diferente do que previa inicialmente, em algumas coisas mais do que noutras.
O crescimento económico previsto no Esboço do Orçamento já era uma revisão face ao programa de Governo, mas de apenas uma décima (passou de 2,2% para 2,1%. A razão, explicada na altura, era a existência de um cenário mais negativo para as exportações. À medida que as negociações avançavam, o crescimento ia sendo mais revisto. Em grande parte, isto deveu-se às mudanças que o Governo acedeu fazer à proposta – umas com caráter recessivo, outras que desapareciam e não provocavam o estímulo desejado.
O cenário chegou a ser revisto para 1,9% (não assumido oficialmente), mas, depois das medidas finais, acabaria por ser reduzido em mais uma décima. O crescimento previsto deixou de ser de 2,2%, e era agora de 1,8%, mais otimista do que as instituições internacionais (FMI prevê 1,4%, Comissão 1,6%, tudo antes das novas medidas), mas ainda assim mais perto.
Para isto contribuiu uma redução do aumento do consumo privado que o Governo esperava – em especial com as medidas que se propunha implementar – que passou de 2,6% para 2,4%, mas também outros fatores em agregados que o Governo era acusado de otimismo, caso das exportações, onde a previsão é revista em baixa em seis décimas, de 4,9% para 4,3% de crescimento.
Menos emprego?
Resultado das medidas negociadas ou de revisão de algum otimismo excessivo, a verdade é que as previsões do Governo também mudaram no que ao emprego diz respeito. O Executivo espera criar menos emprego do que no ano passado, quando o emprego teria crescido 1,1%, mas a diferença era residual, apenas de uma décima.
As previsões mudaram e agora o Governo espera ainda menos criação de emprego, passando a taxa de crescimento de 1% para 0,8%. O impacto faz-se sentir, consequentemente, na taxa de desemprego, que em vez de descer de 12,3% para 11,2%, passará para os 11,3%.
Neste capítulo, é importante relembrar as promessas do ministro das Finanças, quando diz que, através do mecanismo de controlo de substituição de trabalhadores nas administrações públicas (só pode entrar um trabalhador por cada dois que saiam) pretende reduzir em 10 mil o número de funcionários públicos ao longo do ano e, com isso, poupar 100 milhões de euros.
Previsões contestadas e contestação às previsões
Se, por um lado, as previsões do Governo foram alvo de muitas críticas por parte dos partidos da oposição, após as dúvidas colocadas por entidades nacionais e instituições internacionais, também o Governo e o PS contestam as previsões e os métodos das instituições internacionais.
Assim que as previsões do FMI e as da Comissão Europeia foram publicadas, na quinta-feira, o Ministério das Finanças emitiu dois comunicados separados para lembrar que ambos estavam desatualizados face às negociações com Bruxelas que ainda decorriam.
Carlos César, presidente e líder parlamentar do PS, veio então anunciar que o grupo parlamentar iria pedir à UTAO – os técnicos do Parlamento que uma semana antes acusavam o Governo de melhorar artificialmente o défice – para analisar as previsões da Comissão Europeia e do FMI, em comparação com o Orçamento, com o partido a questionar os métodos usados por estas instituições, em especial por não considerarem o efeito de estímulo das medidas que o Governo se propõe a tomar.
Há um ano, os papéis estavam invertidos: o PS, na oposição, dizia que usava as previsões da Comissão Europeia para construir o seu cenário macroeconómico porque as do anterior Governo não eram credíveis. Agora, critica as previsões de Bruxelas. Os partidos que apoiavam o Governo de então, PSD e CDS-PP, defendiam as suas previsões e criticavam as contas de Bruxelas e do FMI, que agora usam para atacar o Governo do PS.