Pais que andam em piloto automático e que se esquecem de trabalhar a relação que têm com os filhos. Que podem não estar a falar corretamente com as crianças e que confundem castigo com consequência. Estes são alguns dos retratos familiares que Magda Gomes Dias traça em entrevista ao Observador. Mais conhecida pelo blogue Mum’s the boss, é formadora nas áreas comportamentais e comunicacionais há mais de 12 anos, tendo certificação internacional em Inteligência Emocional, Educação Positiva e Coaching.
Formalidades à parte, é também a autora do livro Crianças Felizes (Esfera dos Livros), que pretende ser um guia para “aperfeiçoar a autoridade dos pais e a autoestima dos filhos”. A intenção, afirma, não é ensinar os pais a serem pais, mas antes dar algumas estratégias para fortalecer a dinâmica em causa, frequentemente abalada pelo ritmo frenético do dia-a-dia. Porque, no fundo, é tudo uma questão de vínculo e de comunicação.
A proposta também não passa por mudar a forma de atuar das crianças, mas antes moldar as expectativas dos progenitores. O livro pretende ainda desmitificar os termos elogio e autoridade/obediência, não fosse a blogger preferir o conceito de cooperação: “A questão da autoridade e da obediência é uma falsa questão, porque não é autoridade, mas sim cooperação. Está na hora de ir dormir e os miúdos podem não querer mas, porque têm uma ligação forte aos pais, vão querer cooperar”.
As reflexões de Magda Gomes Dias entram todas num mesmo chapéu batizado de Parentalidade Positiva, uma filosofia que tem por base o respeito mútuo entre pais e filhos. Apologista do conceito, a autora diz que o segredo está na paciência de quem educa e adianta que nunca bateu ou castigou os filhos de seis e dois anos.
– O livro aborda a questão da Parentalidade Positiva. O que é isso?
Surgiu há muitos anos nos Estados Unidos, mas chegou agora a Portugal. É uma filosofia que tem por base o respeito mútuo entre pais e filhos. Muitas vezes pensamos “Eu sou tua mãe e tu tens de me respeitar”, mas eles não nascem a conhecer a noção de respeito. A noção vai-se ganhando quando eles veem que os pais os respeitam e os veem respeitar os outros. Às vezes somos os primeiros a falar torto e somos muito agressivos com os miúdos. Existindo o respeito mútuo, não preciso de castigar, bater, ameaçar ou humilhar.
– Quais os mitos associados à Parentalidade Positiva?
As pessoas confundem com parentalidade permissiva, com o deixar os miúdos fazerem tudo, o dar muita atenção e dizer que eles são os melhores. Muita gente pensa que engloba o co-sleeping, mas não. Há muita coisa em comum com [o pediatra] Carlos González, como o respeito, o escutar a criança e o saber que a criança é um ser humano… O Attachment Parenting é muito isto, está relacionado com o apego e tem muito de físico. Mas eu posso começar a usar a Parentalidade Positiva com o meu filho de 15 anos [porque tem que ver com a relação] e o mesmo não acontece com o Attachment Parenting.
– Como é que se pode exercer mal a Parentalidade Positiva?
Ao acharem que a Parentalidade Positiva é permissividade. Normalmente é esse o erro, é passar de autoritário para permissivo, cair no extremo oposto. Por isso é que é um work in progress. No final do livro diz assim: “É com esta transformação que inspiramos os nossos filhos a serem melhores. Esta é a grande conclusão (um pouco romântica, é certo), que lhe deixo. Ou achava que ia mudar o seu filho com este livro? A mudança é sua.” Comportamento gera comportamento.
– Qual é o conceito de castigo dentro da Parentalidade Positiva?
A Parentalidade Positiva sabe que o castigo e a palmada funcionam no curto prazo. Nós temos falta de paciência, não conhecemos outras estratégias. A ideia que dá é que se eu estiver constantemente a castigar ou a dar palmadas, tenho de andar sempre atrás do miúdo. O meu objetivo, enquanto mãe, é ter filhos independentes e autónomos, que saibam pensar e tomar as melhores decisões. Dá trabalho. A Parentalidade Positiva dá muito trabalho. A palmada e o castigo são a lei do menor esforço.
O castigo é a melhor forma de desresponsabilizar uma criança. Eu desresponsabilizo a criança, decido a forma como vou punir e decido como é que ela vai sofrer. Aquilo que eu quero, enquanto mãe, é que ela tome a melhor decisão, que seja responsável. O castigo é um jogo de poder dos pais e não tem nada que ver com a situação. O castigo é “Tiraste negativa a inglês, logo não vais à festa de anos do Manuel”; a consequência seria “Pronto, agora vamos ter de estudar mais”. O raciocínio [ideal] é este: “Tiraste negativa a inglês, vamos ter de melhorar a nota, vamos ter de estudar mais. Em vez de irmos ao parque no sábado à tarde, vamos aproveitar um pouco da tarde e estudar mais”. É que depois sobra para os pais e nós não gostamos disso, exige imensa dedicação.
– E se a criança estiver com uma birra descomunal? Como é que se lida com isso?
Quando isso acontece, por exemplo, no supermercado é pegar na criança e tirá-la dos holofotes. É humilhante para uma criança se o pai a deixar a espernear no meio do chão, pelo que tira-se o miúdo do chão e e acalma-se a criança. E não é porque uma criança está a fazer uma birra que eu vou dar-lhe aquilo que ela quer. A linha é muito ténue entre a humilhação e a ameaça. E a agressividade também está no tom.
– A Magda já se confrontou com um momento em que perdeu as estribeiras?
Não, nunca castiguei nem nunca bati. Isto é uma filosofia, uma forma de estar. Tem que ver comigo, não sou pior nem melhor. Já aconteceu passar a pasta ao pai porque sou humana e há alturas em que não tenho paciência. Eu sei qual é a estratégia que às vezes preciso de ter, mas estou cansada. Não me apetece ir por ali e digo ao pai “Agora és tu”. A educação tem de ser partilhada. E a mãe que está sozinha? Precisa de ter tempo para ela porque a primeira equação da Parentalidade Positiva é “pais felizes, filhos felizes”.
– O livro sugere uma relação entre a autoridade dos pais e a autoconfiança dos filhos. Isto é possível? Como fazê-lo?
Sem dúvida. A criança só se sente tida e achada quando os pais a incluem na relação. Ou seja, quando eu tenho um bom relacionamento com os meus filhos, quando lhes dou valor, eles vão pôr a mesa não porque a mãe está a mandar, mas porque trabalham todos em equipa e querem colaborar. A questão da autoridade e da obediência é uma falsa questão, porque não é autoridade, mas sim cooperação. Está na hora de ir dormir e os miúdos podem não querer mas, porque têm uma ligação forte aos pais, vão querer cooperar — vão pensar que o pai é justo, porque já provou essa justiça em comportamentos anteriores, e vão aceitar mais facilmente.
Como é que se constrói/fortalece esse vínculo entre pais e filhos?
Para começar, os pais que têm mais do que um filho devem trabalhar o dia do filho único: isto é, deixarmos um dos filhos em casa, ou com outra pessoa, e fazermos uma atividade só com aquele filho. Mas não é levá-lo para um parque temático ou para uma piscina infantil, mas sim fazer uma atividade com ele, nem que seja andar de bicicleta ou fazer um passeio qualquer. Isto faz com que a criança se sinta tida e achada na relação e fá-la pensar “os meus pais estão a fazer uma coisa que eu gosto comigo”. Outra ideia — e isto é muito complicado — passa por dedicarmos de forma exclusiva 10 minutos do dia aos miúdos, durante os quais podemos fazer a leitura do livro com intenção, desde que estejamos presentes. Há pais que me dizem: “Magda, eu brinco com eles. Eu sento-me no chão.” Mas quantas vezes estão a fazer isso e a pensar noutras coisas ou com o iPad ao lado? Nós andamos todos muito distraídos.
– O livro diz que devemos encarar os filhos enquanto seres independentes, não inferiores a nós. É possível que estejamos a encarar os nossos filhos de forma errada?
Felizmente acho que essa ideia está a mudar.
– A resposta pressupõe que há pais que já cometeram esse erro…
Sim. Quando dizem que o filho não está a ouvir ou que ele não percebe, estão a nivelar muito por baixo. Achamos sempre que eles não percebem ou que não entendem as coisas. E eles percebem imenso e percebem o tom, bem como a forma como nós os colocamos dentro da relação — se são mesmo importantes ou não. Se não trabalhamos a relação, não conhecemos as características daqueles miúdos à séria. Não é porque o meu filho é tímido ou introvertido, e que não tem tanto à vontade quanto eu, que vou desejar que ele mude. Comentar nesse sentido faz com que eles achem que têm um comportamento desadequado. E é muito difícil mudar. A criança deseja estar à altura dos desejos da mãe e quer fazer essa transformação, mas isso é difícil.
– A criança quer mesmo estar à altura do que a mãe ambiciona?
Sim, até muito tarde. Os miúdos nascem com um chip para agradar aos pais, mesmo quando entram em jogos de poder, quando estão zangados com eles e fazem birras à séria. O que qualquer pessoa deseja é ser tida e achada numa relação. Eles querem que os pais gostem deles.
– Pode dar um exemplo de uma situação em que a criança esteja a pedir a atenção do pai?
Quando, por exemplo, chegamos a casa e vamos para a cozinha fazer o jantar e eles vão desenhar. E, depois, chegam ao pé de nós com um desenho e perguntam se gostamos. A mãe olha e diz “Vai fazer outro para o pai”. Na verdade nem olhamos para o desenho, nem nos interessamos, nem perguntamos o que a criança desenhou. Não precisamos de dizer que está bonito ou feio, mas sim interessarmo-nos. Outro exemplo: vamos ao supermercado com o nosso filho e eles diz-nos “Mãe, quero aquilo. E aquilo. E aquilo”. Nós argumentamos: “Caramba, acalma-te um pouco, para a próxima não te trago para o supermercado”. Estamos aqui a falhar numa coisa enorme: é que o miúdo não quer aquilo, o miúdo quer mostrar à mãe do que é que gosta. É só pararmos e mostrarmos interesse.
– Há défice de atenção dos pais em alguns casos? E se sim, de quem é a culpa?
Eu não gosto de pensar na culpa, já há tanta na equação parental… A culpa é enorme. Acho que a maior parte dos pais faz o melhor que pode e o que melhor que sabe. Mas que há um défice de atenção dos pais, há. Tenho uma amiga que passou um mês sem tablets, telefones ou televisores enquanto os miúdos estavam acordados; chegavam a casa e pousavam o telemóvel e os iPads, ninguém mexia neles. A primeira semana, diz ela, foi horrível, pareciam junkies [viciados, em inglês]. No final do mês disse-me que era impressionante a quantidade de tempo que afinal tinha [para estar com os filhos].
– A sua amiga aprendeu mais coisas sobre os filhos?
Sim, porque esteve presente. Percebeu que o facto de estar proibida de mexer nos ecrãs fez com que ficasse mais interessada no que os miúdos estavam a fazer. E aprendeu a estar com eles. Se nós queremos que os miúdos estejam focados, sejam curiosos, atentos, queridos, que deem valor à família, temos de lhes ensinar isso — não é com palavras, mas sim com experiências.
– Até que ponto essas situações acumuladas, em que um pai presta pouca atenção aos filhos, podem afetar a autoconfiança dos mais pequenos?
A questão da autoestima não é chapa cinco porque também tem muito que ver com a própria natureza da criança. Há miúdos que nascem mais confiantes, exuberantes e corajosos, e há outros que são mais introvertidos, pelo que a própria natureza da criança faz com que ela tenha uma autoestima mais ou menos equilibrada. A autoestima é a estima que eu tenho por mim, o valor que dou a mim própria, é uma coisa muito íntima, mas que depende muito da forma como os pais olham para a criança, pelo valor que lhe dão. A questão é: se nós não dissermos que gostamos deles, como é que eles sabem? Como é que eles sentem isso? Como é que eu posso ajudar o meu filho a ter uma autoestima mais equilibrada? A resposta está na forma como eu falo com ele, como me interesso, naquilo que vejo. Um exemplo é dizer algo como “reparaste que o João comeu a sopa toda sozinho?”; isto sem dizer “boa” ou “parabéns”. Desta forma estou a dizer que sei que o João é capaz e ele vai sentir que a mãe repara nele e que sabe que ele é capaz.
– Os pais falam de uma forma errada com os filhos?
Para mim, a seguir ao vínculo, a forma como nós falamos com os nossos filhos é muito importante. A forma como eu sou assertiva é determinante e nós, muitas vezes, passamos ao lado disso. Dizer “Hoje vamos a casa da avó e tu vais portar-te bem, estás a ouvir?” é vazio. O que é o “portar bem”? Muitas vezes caímos no erro de dizer “não vais fazer birras” ou “não vais bater no teu irmão”; estamos sempre a dizer que comportamentos desadequados não queremos ver acontecer, mas esquecemo-nos de lembrar à criança qual é o comportamento que ela tem de ter. Isto parece básico, mas não é.
Nos miúdos maiores até é importante sermos honestos ao ponto de dizer “É que depois passa a ideia de que eu não sei educar. Sabes, filho?” — os miúdos cooperam, é impressionante. E se no final dissermos “portaste-te muito bem”, isso é vazio. Não é para elogiar, antes para dizer concretamente do que gostei. Isso ajuda a que o miúdo perceba qual o comportamento desadequado para, numa próxima vez, não o repetir. A autoimagem dele vai ficar lá em cima.
– Esquecemo-nos que uma criança é um adulto em formação?
Sim. A criança pensa por que motivo tem de dar dois beijinhos à avó. Ninguém nasce ensinado, nós não sabemos estas coisas. Ao fazer elogios ocos estou a fazer com que o meu filho seja um pleasure seaker, pleaser junky, que vai só à procura de prazer, do elogio.
– Fazer elogios concretos, ser honesto, reparar nas coisas e nos momentos… Isso não exige tempo e paciência a mais por parte dos pais, tendo em conta uma rotina agitada?
Tempo não sei, isto faz-se muito rapidamente. Paciência, sim. Há pais que se queixam de que os filhos nunca lhes contam nada. [O truque é] partilhar o dia-a-dia com eles.
– Parece que tudo passa por conversar um pouco mais com os miúdos. O que acontece quando um pai não tem paciência para o filho?
Jogos de poder. Quando há paciência a criança sente-se importante na relação, pelo que vai querer cooperar e vai ter uma boa imagem dela própria. Quando isto não acontece, a criança não se sente importante nem ligada ao pai. E se é verdade que elas nascem com o chip de quererem agradar os pais, à medida que vão crescendo vão perdendo essa ligação. Também é verdade que, a partir dos nove anos, os pais deixam de ser a última coca-cola do deserto para os miúdos, que é quando eles começam a achar que os amigos é que são importantes. Isto faz parte da evolução natural, da pré-adolescência.
Aquilo que estou a plantar quando os miúdos são pequenos não é para colher logo ali, mas mais à frente, na adolescência. O que quero é que os meus filhos venham falar comigo quando tiverem problemas, que sintam que eu sou um porto seguro. Porque eu coloquei limites firmes — e isso também é importante — e porque me interesso por eles e sou capaz de os proteger. A atitude de desprezo da criança, o revirar os olhos e o não cooperar são jogos de poder. E só se ganha este jogo se o pai mudar de atitude, porque o filho não se vai curvar. Se ele se curvar é porque tem medo do pai e eu imagino que a maior parte dos pais não queira este tipo de relação. Se quiser, está ótimo. É assim que se faz, com castigos e ameaças.
– O livro fala também sobre a importância da inteligência emocional…
A primeira forma de eu gerir as minhas emoções, a raiva ou a excitação, é saber o que estou a sentir. Saber como é que elas se manifestam em mim. A primeira forma para identificá-las é com a ajuda dos meus pais. Também é importante os miúdos saberem que as emoções são passageiras. Se sabem que passam, começam a ter a noção, aos poucos, do estado em que estão e em qual precisam de se colocar — isto é a gestão emocional.
– Temos muitos livros no mercado que nos sugerem o que é ser-se pai. Tanta informação não cria pais inseguros?
Sim, sem sombra de dúvida. Por isso é que não gosto de pensar em pais perfeitos, mas sim em pessoas melhores.
– Mas é preciso ensinar-se os pais a serem pais?
Se é preciso tirarem um curso? É um pouco essa a questão, não é? Aquilo que sei é que dá um jeito imenso saber umas dicas e ter algumas cartas na mão para depois conseguir desamarrar aquela birra.
– Que perguntas faria aos pais para obrigá-los a pensar sobre a educação dos filhos?
Como é que o seu filho sabe que você gosta dele sem recurso a palavras? Como é que ensina felicidade ao seu filho todos os dias? Quais são os medos dos seus filhos e quais são os seus (a dada altura vão perceber que são os mesmos, isto é, que estão a projetar os seus receios nas crianças)? E o que é que o próprio pai faz todos os dias para ser feliz?