Um bom amigo, ao descobrir que tinha ácido úrico em excesso e um princípio de gota, lá foi ao médico. O médico prescreveu-lhe uma extensa dieta sem carnes jovens (leitão!) e sem vinhos. Se cumprisse a dieta, informou o clínico, não precisaria de medicamentos. O meu amigo, que cultiva o pensamento divergente, viu logo a questão por outro ângulo: tomava a medicação e podia continuar com o leitão e o vinho verde. E assim tem sido desde há 15 anos a esta parte. Outros contam calorias e abdominais. O meu amigo vive feliz e sem angústias.

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Isto vem a propósito do recente anúncio urbi et orbi da Organização Mundial de Saúde (OMS) de que a carne mata. Parece que mata 34 mil pessoas por ano! (Para manter o sentido das proporções: só a malária matou em 2012 mais de 600 mil pessoas, dados da mesma OMS.) Os jornais, cansados de inventar títulos sobre o Governo, o que há e o que vai haver, atiraram-se logo ao bife (salvo seja). Os hipocondríacos arranjaram mais um motivo de angústia e as sociedades vegetarianas rejubilaram. E os produtores de enchidos, que já estavam escaldados com o botulismo que, semanas antes, atacara as alheiras transmontanas, amaldiçoaram o destino e temeram pelo futuro.

Sem razão. Nem todos possuem a clarividência e a desfaçatez do meu amigo da gota mas quase todos, felizmente, parecem cultivar nestes assuntos uma sábia indiferença.

Já dizia o filósofo escocês David Hume no seu “Tratado sobre a Natureza Humana”, a propósito da angústia solipsista, que a própria natureza resolve o que a razão não pode resolver: seja pela “distracção da mente” seja por uma “viva impressão dos sentidos”, depressa apaga “todas essas quimeras”. Os portugueses, claramente, partilham deste sólido bom senso escocês: depois de lerem e ouvirem os peritos e trocarem piadas nas redes sociais e entre amigos, esquecem o assunto e vão à vida deles. Um tal senhor Leite, há dias, disse tudo à TSF. Cito: “alarmou-me um bocadinho, mas se comer uma alheira hoje e outra para a semana acho que não tem problema. O segredo é comer de tudo.” Não conheço o senhor Leite mas daqui lhe envio os meus respeitos.

Os moços da OMS, a quem parece escapar o significado profundo de duas letrinhas muito usadas em culinária – q.b. – deviam aprender com o senhor Leite.

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