A entrevista de Passos Coelho à SIC foi reveladora. Não pelas respostas de Passos Coelho, mas pelas perguntas dos jornalistas. No fundo, tentaram que Passos reconhecesse como uma derrota o facto de o país estar melhor agora do que em 2011 (notem bem: 2011). Mas não é essa a maior vitória de Passos Coelho? O facto de depois de três anos de ajustamento, em que só ele acreditou, ter deixado a economia a crescer, o desemprego a diminuir, o Estado social a funcionar, e o país em condições de beneficiar da ajuda do BCE? Os verdadeiros derrotados não serão antes aqueles que, durante quatro anos, o acusaram de ter destruído a economia, arruinado o Estado social e até desintegrado a Europa, para depois, uma vez no governo, colherem os frutos dos trabalhos de Passos?
Acontece que Passos está na oposição e aqueles a quem ele refutou e derrotou em eleições estão no governo. Para o que mais importa, que é quem está em São Bento, ele perdeu e eles ganharam. E não ganharam apenas o governo. Ganharam também uma benevolência ilimitada.
A oligarquia, muito assustada durante o ajustamento, vive em lua de mel. Admira a solidez da coligação, sem perceber o desespero que a explica: a derrota de Costa e a perda de influência do PCP e do BE. Elogia o crescimento da economia em 2016, sem querer notar que é inferior ao de 2015, apesar dos juros baixos e do petróleo barato. Está embasbacada com o défice, sem querer saber da dívida. Há quatro anos, havia muita gente com medo da “espiral recessiva”. Não deveríamos ser um pouco mais cautelosos perante a corrente “espiral eufórica”?
Peguemos no défice, por exemplo. É construído em negociação com a Comissão Europeia. Como notou Daniel Bessa há umas semanas, o nível dessa “construção” pode ser medido pelo facto de, em 2016, o défice ter sido de 3807 milhões de euros, mas a dívida ter aumentado em 9590 milhões. Ou seja: por decisão política, “3807 milhões contaram para o défice, e 5783 milhões não contaram”. Mas para a dívida, contou tudo. Por isso, cresceu 4,1%, mais do que a economia e mais do que o previsto pelo governo. O seu peso, que diminuíra de 2014 para 2015, voltou a agravar-se, para 130% do PIB. O défice mais pequeno da democracia esconde a maior dívida da democracia, que é também a segunda maior da União Europeia, e ainda a segunda que mais cresceu na Europa em 2016.
Neste momento, em Portugal, só a dívida pública diz a verdade. Essa verdade é um Estado que continua a endividar-se em grande escala, uma sociedade envelhecida, uma economia com baixo potencial de crescimento, e credores cada vez mais desconfiados, como se constata pela diferença entre o custo da dívida portuguesa e da dívida alemã. O governo confessa tudo isso, ao cortar o investimento público e ao tomar certas precauções (parte do aumento da dívida são “depósitos”). A dívida é o fantasma de Banquo do regime.
Entretanto, a OCDE prevê o arrefecimento da economia portuguesa, numa inversão da subida que se verificou de 2013 a 2015. Mas para que são as preocupações, enquanto a União Europeia mantiver Portugal ligado ao pulmão de aço do BCE? Em 2008, o mundo descobriu o sub-prime: os empréstimos de alto risco a quem não podia pagar. O BCE está a produzir um outro tipo de sub-prime: o financiamento politicamente motivado de Estados que recusam reformar-se, isto é, renunciar aos constrangimentos fiscais e burocráticos a que submetem os cidadãos. Um dia, também este novo sub-prime será descoberto. Bastará, por exemplo, que alguma eleição corra mal na França ou na Alemanha.
Entretanto, o efeito do endividamento transparece em pequenos pormenores, como no sarcasmo com que o célebre Djisselbloem comentava ontem: “Esperava que Portugal pedisse a minha demissão, mas não o fez”. Pois não. Os leões de Lisboa são hamsters em Bruxelas. Porque em Bruxelas, valem o que vale a total dependência financeira de uma economia sem reformas.