Em Junho passado, na Assembleia da República, o grupo parlamentar socialista negou que os números baixos da epidemia em Portugal tivessem sido sorte. Nada disso. Conforme explicou então uma deputada,  “o vírus teve, diria eu, talvez o azar de encontrar pela frente um povo experimentado e um governo capaz”. Que sorte teve agora o vírus, para Portugal exibir há vários dias dos piores resultados do mundo em infecções e em mortes? O governo deixou de ser capaz? Não, diz a oligarquia socialista. O governo é excelente. De modo que, por exclusão de partes, fica o povo, para sofrer mortes e infecções, e ainda carregar com as culpas (repartidas, entretanto, com a Inglaterra, por causa da sua “variante”). Mas resta a questão: porque é que um povo tão “experimentado” em Abril, perdeu essa “experiência” em Dezembro e Janeiro? Não teve o governo nada a ver com isso? Só no Brasil e nos EUA é que os governantes têm responsabilidades pelo descontrole da epidemia?

O Estado é-nos recomendado hoje em dia como o único mecanismo capaz de respostas eficazes em tempo de crise. Ora, o que temos de concluir em Portugal, pelos resultados nesta fase da epidemia, é que não foi. E o que temos de concluir, pelos resultados de outros países vizinhos, é que poderia ter sido. Nada disto era inevitável. Morreram em Portugal, sob este governo e as suas autoridades sanitárias, pessoas que poderiam não ter morrido.

É óbvio que a principal responsabilidade é do governo. Vivemos numa sociedade dirigida por um Estado paternal, que é quem permite, proíbe e aconselha. O Estado privou-nos, ao longo de décadas, de quase toda a autonomia de escolha, especialmente aos mais pobres. Não se pode tirar a uma sociedade os reflexos de decisão autónoma, e depois culpá-la de não ter seguido espontaneamente o bom caminho. Habituámo-nos a receber e seguir indicações do governo e das demais autoridades. E habituámo-nos também a levar a sério essas indicações em função da sua consistência e das sanções associadas. Eis, como muita gente já notou, o problema.

No ano passado, o confinamento foi, como noutros países, a grande arma governamental contra o vírus: sacrificou-se a economia para preservar o SNS. O governo, porém, nunca usou essa arma consistentemente. Sobretudo desde a nova escalada da epidemia, a partir de Outubro. Mas já antes, havia criado todo o tipo de excepções, e exercitado toda a espécie de avanços e recuos. O governo explica os péssimos resultados por os portugueses não se terem portado como era esperado. Mas os portugueses portam-se de acordo com os sinais que recebem, e estes têm sido sempre confusos.

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A questão é saber porque é que estes sinais têm sido confusos. Por azar? Por incompetência e incúria? Penso que há mais do que isso. Para começar, parece sempre ter havido para o governo valores mais altos do que a saúde pública. Logo no início da epidemia, as regras foram suspensas para tudo o que teve a ver com as liturgias do regime — as comemorações do 25 de Abril e do 1º de Maio – ou com as demonstrações de força da geringonça. Vimos assim o presidente da Assembleia da República a renegar as máscaras (“então nós íamos mascarados para o 25 de Abril?”), e os comunistas a fazer ajuntamentos que, após as fotos norte-coreanas da Alameda, se tornaram tão caóticos como quaisquer outros. Foi também óbvia a relutância em admitir que, por mais grave que fosse a situação, o sector privado e social pudesse desempenhar um papel. As esquerdas fizeram do monopólio estatal de escolas e de hospitais a sua grande causa, e preservar esse princípio ideológico é mais importante do que defender a saúde pública. É por isso que, ao ouvir apoiantes do governo como a candidata presidencial do BE, quase parece que os “privados” são uma ameaça maior do que o vírus. Claro que, com a ideologia em primeiro lugar, nunca o governo poderia tornar clara a gravidade da situação sanitária.

Mas essa não é, apesar de tudo, a razão mais relevante para a confusão de sinais do governo. A razão pela qual o governo não pôde ser decisivo no uso do confinamento é esta: a oligarquia socialista tem noção de que não pode recorrer demasiado à arma do confinamento, por mais dinheiro que nos próximos anos venha da Europa. A demora e a frouxidão do governo são, no fundo, uma confissão. Desde 2015, que a oligarquia socialista proclama que “virou a página da austeridade”, mesmo contra toda a evidência das “cativações” e da escassez de investimento público. Mas o seu comportamento durante esta epidemia prova que sabe: sabe o que todos os governos socialistas fizeram durante 25 anos, ao arrastarem um país estrangulado pelo fisco e pela burocracia para o endividamento e a estagnação económica, com o turismo como único respiradouro; sabe o que este governo fez, ao aproveitar o ajustamento conseguido por Passos Coelho para privilegiar o que julga serem as suas clientelas eleitorais no funcionalismo, mesmo à custa dos serviços públicos, como no caso das 35 horas. O governo sabe que, por causa das suas políticas, a economia e a sociedade portuguesa estão demasiado frágeis para suportarem uma quarentena suficientemente rigorosa. Daí, as semi-medidas com que, desde o Verão, ajudou a confundir e a desmobilizar uma população já cansada da pandemia e, antes do Natal, falsamente tranquilizada pela perspectiva da vacina.

Mas o governo julga que sabe também outra coisa: que as relutâncias ideológicas e os receios económicos e sociais que o fizeram hesitar e demorar podem jogar a seu favor. Paradoxal? Nem tanto. Reparem: o governo tem decidido sempre depois dos números piorarem, depois de os especialistas mais alarmados passarem a ser os mais ouvidos, e depois de as sondagens, em função de tudo isso, indicarem que a população, finalmente, se inclina para o rigor. Foi o que aconteceu com o encerramento das escolas. Mas isso quer dizer que o governo, no futuro, poderá sempre argumentar, se alguém lhe pedir contas pelas destruições económicas e sociais do confinamento, que fez apenas o que toda a gente desejava que se fizesse, e que, portanto, a sua responsabilidade é muito menor do que se as decisões, tomadas antes do pior acontecer, tivessem resultado de uma previdência governamental para evitar situações-limite. Ou seja, ao governo convém um bocado de catástrofe antes de agir, de modo a poder lavar as mãos dos efeitos secundários de qualquer confinamento. Percebe-se porquê. Até agora, o governo apostou tudo na clientelização de uns quantos grupos de dependentes do Estado, como os funcionários e os pensionistas. Esses têm os rendimentos protegidos durante a epidemia. Os outros, não. Como irão esses outros reagir? Até agora, o descontentamento diluiu-se na abstenção. Mas não é impossível que uma eventual responsabilização do governo durante esta epidemia inspire alternativas políticas e a sua conexão com os descontentes. Por isso, convém ao governo desresponsabilizar-se em relação ao confinamento e aos estragos que vai causar. Que melhor opção, senão deixar as coisas resvalarem, até o remédio parecer inevitável e ser desejado e exigido por todos?

O governo sobreviveu a Pedrógão, sobreviveu a Tancos, sobreviveu a tudo, incluindo a vergonha, esta semana, de ser repreendido no Parlamento Europeu por informações falsas. Espera, como é natural em quem já se safou de tanta coisa, sobreviver também à epidemia, aos seus mortos e aos seus prejuízos. E, não tão paradoxalmente como possa parecer, espera que a sua própria confusão e desnorte o ajudem a escapar mais uma vez.