É difícil definir o que é o politicamente correto. Talvez seja mais fácil transcrever uma pequena história relatada pela socióloga Arlie Russell Hochschild, na sua etnografia sobre o Luisiana, publicada no ano passado. O episódio é contado na primeira pessoa por Mike Schaft, criado pela família numa plantação de cana-de-açúcar. A certa altura diz ele: “Eu costumava dizer a N-Word e muitos dos miúdos pretos com quem eu brincava diziam-na também. Mas deixei de a dizer em 1968. Lembro-me de gritar, em 1968, da claque do estádio de futebol da universidade, a torcer pelo nosso melhor jogador. ‘Corre! Negro! Corre!’ E no ano a seguir, em 1969, estava a gritar “Corre! Joe! Corre!’ Não voltei a usar a palavra desde essa altura. E estou ansioso para que chegue o dia em que a cor não importe. Penso que estamos a meio caminho.”
Convém esclarecer que “negro” é uma palavra proibida nos Estados Unidos, porque remete para o imaginário da escravatura e da segregação. Era (e é) um insulto. A palavra politicamente correta é “afro-americano” e em linguagem coloquial (leia-se entre amigos, em privado ou em referência a uma comunidade e não a um indivíduo) ninguém se ofende com a designação black. E que este é apenas um dos muitos exemplos das minorias supostamente (sim, supostamente) protegidas por estes artifícios.
Assim, talvez a melhor definição de politicamente correto talvez seja mesmo o conjunto de palavras, expressões, atos e posições políticas ou ideias ditas discriminatórias que são sancionadas socialmente. E na sociedade americana, garanto-vos, as restrições são muito mais do que na Europa, e a população muito mais vigilante.
Só aos poucos me fui apercebendo da força deste pressuposto político na sociedade norte-americana. Fui aprendendo a conviver com as queixas de uns e de outros. Em privado, os membros das minorias queixavam-se de que as pessoas usavam subterfúgios linguísticos para lhes lembrar que não eram brancos (uma interpretação largamente exagerada) e os membros da maioria iam dizendo que tanta “ação afirmativa” (a nova expressão politicamente correta para a “descriminação positiva”) acabava por lhes prejudicar a vida. Como se “ser branco”, especialmente do género masculino, fosse razão suficiente para passar a vida a “pedir desculpa”.
Podíamos dissertar sobre o que levou a este comportamento – que não é apenas americano – mas as razões não cabem aqui. Onde queria chegar é que uma sociedade que é obrigada a autocensurar-se permanentemente, acumula ressentimentos entre grupos sociais. Muitos. E mais tarde ou mais cedo esses ressentimentos vão ter consequências políticas. Também não vale a pena dizer que parte (não se consegue medir quanto) da vitória de Trump e o sucesso de outros populistas se deve ao facto de estes dizerem o que parte da população pensa, mas engole como se fosse um sapo.
Mas há três coisas que vale a pena dizer: a primeira, é que não se combate o politicamente correto com o seu contrário – palavras inflamatórias e discursos populistas. Se esconder a verdade com eufemismos não faz bem a ninguém, deturpar a verdade com expressões exageradas e depreciativas também não.
A segunda, é que o politicamente correto é um fantasma social: é criado por movimentos e grupos sociais e políticos que beneficiam em determinado momento histórico, da criação de clivagens e correspondentes “palavras proibidas” que se perpetuam e reproduzem no tempo.
Terceiro, para combater o politicamente correto é preciso desmistificá-lo. É preciso procurar origens. É preciso desfazer mitos históricos. É preciso denunciar cada vez que se assiste a um novo comportamento político nesse sentido, não respondendo da mesma moeda, mas desmontando o discurso, com a moderação que é necessária em casos delicados. Mas acima de tudo é preciso, de uma vez por todas, que os responsáveis políticos dialoguem com as populações. Que quem está no poder tem de ser capaz de falar com a opinião sobre assuntos complexos, inclusive no que respeita à mudança de paradigmas.
Impopular? Com certeza. Difícil? Sim. Demorado? Sem dúvida. Mas se tantos se preocupam, e bem, com a saúde do planeta não para as nossas gerações, mas para os que vêm a seguir a nós, a mim também me preocupa a saúde das nossas sociedades, agora e no futuro. Também, como Mike Schaft, “estou ansiosa para que chegue o dia em que a cor não importe” (pode substituir-se “cor” por uma série de outros preconceitos instrumentalizados). Mas isso só será verdadeiramente possível com uma drástica redução do politicamente correto. E nisso, todos temos responsabilidades.