Esta semana assistimos a vários acontecimentos de sinal contrário. As boas notícias: a Geórgia elegeu dois senadores democratas, o que dá paridade aos partidos na Câmara Alta, mas poder de decisão a Kamala Harris que, como presidente do órgão, tem o voto de desempate. Segunda notícia: apesar da ameaça, em parte concretizada, dos mais de 140 representantes e 11 senadores republicanos votarem em irregularidades em cinco estados, Joe Biden foi confirmado presidente.

Boas notícias por três razões: a primeira e mais óbvia é que, sem este resultado eleitoral, que lhe dá um governo unificado, a administração Biden não teria qualquer hipótese de decidir. Tem uma janela pequena, dois anos, para tentar concretizar os projetos que não possam ser desfeitos pela paralisia de um sistema que pode muito bem verificar-se a partir das eleições intercalares de 2022. Em segundo lugar, porque, apesar de tudo, as instituições funcionaram. Biden foi confirmado porque ganhou as eleições e é o legítimo presidente dos Estados Unidos da América. Em terceiro lugar, porque perante os acontecimentos de quarta-feira, Biden tornou-se numa espécie de símbolo da decência americana. Fez um discurso sóbrio sobre a invasão do Capitólio, condenou-o como um ataque ao Estado de Direito, mas distinguiu os infratores dos restantes americanos – incluindo os apoiantes de Trump.

Mas os acontecimentos dos últimos meses mostram-nos que se está a abrir um novo ato na tragédia americana. Donald Trump – que finalmente assumiu a existência de uma transição pacífica de poder, mas com a mensagem que não está com vontade nenhuma de se ir embora – criou uma narrativa pós-eleitoral de que os resultados são fraudulentos. Levou-a ao limite da antidemocracia e a verdade é que, mesmo assim, existe, quer entre elites republicanas, quer entre os seus votantes, um considerável grupo de nacionalistas-nativistas que vieram para ficar. A expressão não é correta. Já cá estavam. Trata-se de uma tendência de longo prazo – nascida no final dos anos 1960 –, que passa por figuras que, entretanto, se institucionalizaram, como Nixon e Reagan, mas outras que se mantiveram intransigentes na defesa da “civilização branca” e dos valores da chamada verdadeira América. Lembram-se de Newt Gingrich, Ross Perot, o Tea Party, de onde surgem figuras como Sarah Palin e Ted Cruz? O nativismo tem linhagem. Nós é que não quisemos olhar para ela.

Mais, o fenómeno não é meramente americano: é um problema que aflige toda a Europa Ocidental ainda que com expressões diferentes. A polarização social pode estar mais diluída e a fragmentação dos partidos pode dar-nos a ilusão que o centro ainda é predominante. Mas aprendamos com o exemplo americano, que as coisas mudam muito rapidamente quando o descontentamento popular se cruza com políticos mal-intencionados.

Voltando aos Estados Unidos. Estes acontecimentos colocam duas novas questões. A primeira é, qual o futuro do Partido Republicano? Há três hipóteses: ou os mais conservadores, com ajuda da Biden, ganham um novo fôlego e “esmagam” os trumpistas, o que é pouco provável, uma vez que os radicais, mesmo quando são menos, são muito mais aguerridos na sua luta; ou os trumpistas tomam conta do partido – com dissidências republicanas para o partido democrata, o que não é novo na história dos Estados Unidos; ou o Partido Republicano parte-se e nasce uma nova formação – que pode ser um outro partido ou um movimento – que transforma o sistema bipartidário, tal como o conhecemos atualmente, e impede alternâncias de poder – leia-se, os republicanos dificilmente voltam a ganhar eleições.

A segunda questão está relacionada com a invasão do Capitólio. Sou das pessoas que acredita que aqueles milhares não representam o eleitorado de Trump. São mais extremistas, menos tolerantes e mais dispostos a tudo que todos os outros. Devem ser identificados, levados à justiça. São de facto uma ameaça ao Estado de Direito, que não pode ficar impune. O que não sabemos é se haverá mais e o que estarão dispostos a fazer para enfraquecer o seu próprio país. Joe Biden precisa de uma política externa forte se quer retomar a liderança americana do mundo, como não se cansou de dizer durante da campanha eleitoral. Conseguirá fazê-lo com tantos “inimigos” (e não falámos dos democratas radicais) a sabotarem-lhe o caminho? Mesmo com um governo unificado? Os próximos dois anos nos Estados Unidos da América vão determinar muito daquilo em que o país se vai tornar. Fica sempre a esperança – desta vez mais sumidinha – de que os EUA tenham, mais uma vez, a capacidade de se reinventar. Mas a realidade não parece complacente com os meus desejos.

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