O PCP e o BE lançaram uma campanha contra o “arco da governação”, com o objectivo de limitar as opções do PS. Mas o arco da governação não é uma “maldição”. O arco da governação inclui os partidos que em Portugal se propõem realizar os seus projectos no respeito da democracia pluralista, isto é, os partidos que aceitam a alternância no governo e os limites do poder político, não como um constrangimento ocasional e descartável, mas como uma dimensão fundamental e inultrapassável do regime.
Naquilo que tem de melhor, a actual democracia consistiu, desde 1976, no reconhecimento político da pluralidade estrutural da sociedade portuguesa. O mapa eleitoral deste domingo mais uma vez evidenciou essa pluralidade, através do velho contraste entre o norte e o sul (a coligação ganhou em todos os círculos a norte do sistema montanhoso central, e o PS a sul). Como é óbvio, a democracia portuguesa não é compatível com o governo de partidos que neguem o pluralismo político, como seria o caso de um partido de doutrina salazarista e é o caso do BE e do PCP.
Por razões históricas, o regime proíbe partidos que advoguem ideologias “fascistas”, mas permite comunistas e neo-comunistas. É assim a lei. Mas na prática, o BE e o PCP não podem fazer parte da governação em Portugal. São partidos de guerra civil. Não aceitam quem não pense como eles. Para o BE e para o PCP, a direita (toda a direita: democratas-cristãos, liberais ou conservadores) é “fascista”, e até o PS, segundo eles, tem políticas de “direita”. Ou seja, para o PCP e para o BE, o PS só poderia salvar-se submetendo-se à visão e à direcção de Catarina Martins ou de Jerónimo de Sousa (só assim seria de “esquerda”), e a direita deveria ser simplesmente eliminada. Os projectos do PCP e do BE nunca seriam viáveis em Portugal a não ser através de uma ditadura, igual à que partidos desse tipo instituíram em toda a parte sempre que chegaram ao poder. A menos que, aberta ou implicitamente, renegassem os seus princípios revolucionários, como agora dizem que o Syriza fez sob pressão europeia.
Os cerca de 20% de eleitores que hoje em Portugal votam no PCP e no BE desejam a ditadura e o abastecimento norte-coreanos? Talvez não. Provavelmente, a maioria apenas rejeita o “sistema”, indiferente às consequências dessa rejeição. Muitos deles votam hoje no BE e no PCP como amanhã poderão votar numa Frente Nacional (em França, aliás, a Frente Nacional é a herdeira eleitoral do Partido Comunista Francês, com o populismo soberanista a servir de ponte entre os dois extremos). Desse ponto de vista, o arco da governação em Portugal tem funcionado, a nível do governo, como o equivalente da “frente republicana” que, em França, exclui a Frente Nacional. Em Portugal, compreende os partidos que no Verão e no Outono de 1975, à direita e à esquerda, resistiram juntos contra uma autocracia militar de inspiração comunista, que votaram as grandes revisões constitucionais de 1982 e de 1989, e que promoveram a integração europeia e atlântica, fazendo de Portugal uma democracia de tipo ocidental e inserida na UE e na NATO.
Há quem diga que o arco da governação prejudica o PS, porque o obriga a privar-se do “apoio” do PCP e do BE. É a mesma discussão que a direita republicana tem em França perante a Frente Nacional. Mas essa desvantagem não existe. Primeiro, porque o PCP e o BE nunca “apoiariam” o PS, a não ser para o dominarem. Segundo, porque o PS, quando necessário, tem conseguido aliar-se ou entrar em acordos com o PSD e o CDS: foi assim que Mário Soares governou entre 1976 e 1978 e novamente entre 1983 e 1985, Guterres entre 1995 e 2002, e Sócrates entre 2009 e 2011. Mesmo em 2005, quando conseguiu uma maioria absoluta, o PS fê-lo com um programa e uma atitude reformistas, que apelavam ao eleitorado do PSD e do CDS. Chegou assim à maioria absoluta apesar do crescimento do BE e do PCP nessas eleições.
O PS governou Portugal durante 13 dos últimos vinte anos. Sob a direcção desastrosa de António Costa, quase escorregou para fora do arco da governação. Talvez uma liderança mais forte e lúcida o possa repor no lugar que é o seu, como grande partido de governo desta democracia. Mas esse caminho não se faz com Jerónimo de Sousa ou com Catarina Martins, mas contra eles.