1. O resultado da primeira volta das presidenciais francesas anuncia o ocaso da 5ª República.

Em 2018, a 5ª República francesa fará 60 anos de vida, a mesma idade da União Europeia. a terceira idade da integração europeia inicia-se sob a ameaça das presidenciais francesas, sendo previsível a sua desagregação caso Marine Le Pen as vença; mas esta primeira volta representa também o canto do cisne da 5ª República (do país) de De Gaulle.

No célebre discurso de Bayeux, em 1946, o general De Gaulle profetizou o que deveria ser o regime político da França libertada: um presidente da República forte e um parlamento composto por duas câmaras, pondo fim aos excessos parlamentaristas da 4ª República. A personalização do poder na sua pessoa só se confirmou em 1958, quando a crise da Argélia liquidou a 4ª República e uma nova Constituição inaugurou um regime novo sob a sua égide.

Sujeito, predicado e consequência da criação de uma República forte, presidencialista e bicameralista, profeta na sua terra e para o futuro dela, o general previu com sageza o futuro, ao dizer, em certa ocasião, “eu não tive predecessor, não terei sucessor”. E contudo, a sua criatura – a 5ª República – perdurou, mantendo-se desde então o seu exemplo e nome como referências principais de todos os políticos, das mais díspares ideologias e obediências.

O partido fundado por De Gaulle em 1947, o “Rassemblement du Peuple Français”, não durou 10 anos. Os seus sucessores mudaram constantemente de nome: da UNR (1958) ao RPR (durou 35 anos, coisa rara), terminando na UMP e nos actuais “Les Républicains”, o gaulismo manteve-se no centro da vida política francesa. De Gaulle permanece a referência suprema da grandeza de uma França portadora de uma mensagem global de humanismo.

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O seu nome é, sem cessar, invocado.

Em seu nome se suicidou politicamente François Fillon, ao criticar Nicolas Sarkozy pelos seus negócios e Alain Juppé pela condenação há 12 anos numa questão de… empregos fictícios (embora ligados ao financiamento partidário). Perguntou ele: “”quem imagina por um momento o general De Gaulle indiciado pela justiça?”. Foi pouco tempo antes de ser chamado a responder perante a justiça num caso de… empregos fictícios (da mulher e filhos); mas não desistiu da corrida presidencial, contribuindo para o desprestígio do regime.

Em seu nome fala também Emmanuel Macron – “como De Gaulle, escolho o melhor da esquerda, o melhor da direita e mesmo o melhor do centro”. E Marine Le Pen : “em 1943, lembrava o general de Gaulle em Casablanca que a grandeza de um povo só provém dele mesmo. É esse princípio que, durante os 1500 anos da sua história, construiu a França que amamos. É esse princípio que seguirei”.

De Gaulle esteve na génese do actual regime político francês. A agonia da 5ª República aprofunda-se com a rejeição pelos franceses dos herdeiros directos do gaullismo e do partido da alternância, o PSE, quase varrido do mapa nesta primeira volta. A 6ª República espreita…

2. A vitória de Macron parece adquirida. Estará mesmo ?

Alexandre Afonso, da Universidade de Leiden (luso-suíço de nacionalidade), publicou no blog da LSE Europp uma ilustração sobre a possível transferência de votos da primeira para a segunda volta das eleições. A base é uma sondagem da IPSOS que perguntou aos votantes da primeira volta em quem pensam votar na segunda. Eis os resultados, na ilustração de Afonso:

Serão pois “favas contadas” (perdoe-se-me a expressão)?

Recorrendo ao lugar-comum, recordo as recentes surpresas com as mais diversas sondagens, do brexit às presidenciais americanas passando pelas anteriores eleições britânicas, talvez estas o epítome máximo da falência das sondagens. Nessa base, não, não são “favas contadas”. Dirão os optimistas que as sondagens nesta primeira volta acertaram quase em cheio. E têm razão, pelo que o melhor talvez seja mantermo-nos optimistas.

Mas se em vez do trivial examinarmos os números da IPSOS, salta à vista a projectada transferência de votos de Mélenchon: apenas 9% dos que nele votaram dizem ir votar em Le Pen, pouco mais de 630 mil votos. 33% dos votantes em Fillon escolhem a candidata frentista, cerca de 2,3 milhões. Ora se os números de Fillon podem até ser maiores, pois a orfandade da direita encontra em Marine uma guarida sedutora, também os apoiantes de Mélenchon podem revelar-se uma surpresa.

É certo que o candidato da extrema-esquerda acusou Le Pen de ser “nacionalista” e não “patriota” como ele. Mas, perdida a eleição, recusou-se a apoiar Macron. E os programas políticos de Le Pen e Mélenchon tinham demasiadas coisas em comum; ambos denunciam a União Europeia, ambos lutam pelo voto operário, ambos defendem o encerramento das fronteiras, ambos advogam a “preferência nacional”, a reforma aos 60 anos e o aumento do ordenado mínimo. Ambos apoiam Bashar Al-Assade… Muito mais votos do que os 9% podem ainda transferir-se de Mélenchon para a candidata da Frente Nacional.

Dar a vitória de Macron por adquirida é o pior que os seus apoiantes e ele próprio podem fazer. E não será o apoio de Fillon, de Cazeneuve, de Hamon, de Hollande (sobretudo o deste!), a valer-lhe, terá de ser ele mesmo, confiante, substancial, credível. Afinal, os franceses votaram contra o regime, a 5ª República e os partidos do sistema, não serão por isso os representantes dos partidos do sistema a salvar o candidato do centro do centro.

3. O futuro, ganhe Macron ou Le Pen, é imprevisível. Le Pen não tem deputados, Macron não tem partido (nem deputados). E as eleições legislativas são diferentes das presidenciais.

A França é um país imprevisível. Mas essencial. Sem ela não há integração europeia, e sem integração europeia não há paz na Europa.

A França é um país imprevisível. E paradoxal. “Em todas as épocas, o apetite do privilégio e o gosto da igualdade são as paixões dominantes e contraditórias dos franceses”, para citar mais uma vez De Gaulle (sempre ele). Para além da quantidade de queijos que a tornam ingovernável, claro…

Les jeux ne sont pas encore faits.