A vaga de crimes.
Informava o PÚBLICO: “O Conselho de Ministros aprovou nesta quinta-feira uma proposta de lei de combate à discriminação racial onde se prevê, pela primeira vez, os conceitos de multidiscriminação (por exemplo, alguém que é discriminado por ser mulher e negra) e de discriminação por associação (que acontece, por exemplo, se um jovem que se desloca com dois ciganos a um serviço público é mal atendido por estar com eles).”
A primeira tentação perante o desrazoamento de tudo isto é rir. A começar pelos exemplos do texto que encerram expressões misteriosas como “um jovem que se desloca com dois ciganos a um serviço público”. Que terá de particular este jovem para não ser referido como susceptível de ser discriminado?
E porque é ele – o não discriminável – referido pela idade e os outros dois identificados como ciganos? E se os dois ciganos acabarem no tal serviço público a serem atendidos por uma mulher negra e se se gerar um problema entre os três quem vai ser acusado de quê?
Nem é preciso grande imaginação para conceber vários imbróglios à conta da multidiscriminação e da discriminação por associação. Por esse mundo fora iniciativas legislativas deste género têm transformado num inferno a vida quer daqueles que alegadamente querem proteger quer dos que fulanizam como potenciais agressores. Mas não só. Os poderes destas comissões nunca escrutinadas a par das suas intervenção alicerçada em leis que são tratados ideológicos tornaram estes organismos nas novas inquisições.
Não duvido que entre nós vão aumentar as queixas por racismo associado, múltiplo, simples ou no que calhar. E mais certeza tenho ainda que a cada nova queixa as comissões pedirão mais meios e mais comissários e acusarão de racismo todos aqueles que os criticarem. Vai ser literalmente o milagre da multiplicação do racismo, dos euros e dos comissários. O combate às discriminações é uma espécie de parceria público-privada com rendas garantidas e boa imprensa prometida.
A vaga dos impunes.
“Dá-me o seu cartão de cidadão por favor? Precisamos de uma cópia.” A conversa não é ficção e teve lugar mais do que uma vez em vários serviços públicos e privados por onde passei na passada semana após várias viagens de metro onde uma voz anunciava que agora é fácil, rápido e não sei mais o quê obter on line a factura dos recibos dos bilhetes vendidos por aquela empresa pública.
Maravilhoso país este em que um café não pode vender um pastel de bacalhau sem passar factura e uma grande empresa pública nos manda ir daí a não sei quantos dias ao portal on line para digitar números vários e assim obter a respectiva factura!
Deve ser tão bom viver no país de faz de conta do legislador, esse país onde o cidadão (sobretudo o que pode ser acusado de discriminação por associação ou multidiscriminação) é uma espécie de boneco animado que em cima das suas obrigações administrativas e fiscais ainda tem de dedicar os seus serões à recolecção das suas facturas e as manhãs à resolução do enigma: dar ou não dar cópia do cartão de cidadão naquele serviço público que a pede mas proíbe ao mesmo tempo?
Entendamo-nos: o nosso cartão de cidadão foi concebido com várias particularidades. A primeira, uns números minúsculos para não dizer ilegíveis. A segunda é que só nos pode identificar connosco ao lado. O nosso cartão de cidadão é tão perfeito, tão perfeito que não pode ser digitalizado. E assim munidos desta perfeição assombrosa ficámos nós com uma vida bem mais complicada que nos pretéritos tempos do saudoso BI.
Acontece que a burocracia portuguesa não só adora fazer-nos andar de um lado para o outro como também ficar com uma recordação nossa. A saber com uma cópia do nosso cartão de cidadão. Serviços há em que é uma cópia por cada assunto. Qual é a alternativa: não tratar daquilo que o Estado nos obriga a tratar e de caminho pagar as coimas correspondentes? Ao vulgar cidadão – e mesmo ao invulgar que tem por si o futuro quadro legislativo da multidiscriminação e da discriminação associada sem esquecer a associada que também é múlti ou vice versa que não é necessariamente o mesmo – resta o quê? Ir para casa e reservar parte da noite para obter as facturas do metro de Lisboa e de caminho validar as outras nesse big brother que é o portal da Autoridade Tributária. Mas sempre dando graças por ser tudo tão moderno, democrático e funcional. O que seria se não fosse!
A vaga de frio.
Portugal paga um serviço público de televisão, paga programas de ciência viva, paga até um ministério da cultura e arrepela os cabelos por causa do acordo ortográfico mas não consegue ter um boletim meteorológico! Mais, as notícias sobre meteorologia regrediram científica e informativamente, falando para níveis de feira de fenómenos do princípio do século XX.
Os considerandos sobre o “bom tempo” que pululam nas nossas rádios, jornais e televisões fariam sorrir os nossos avós. Todos os dias repórteres frenéticos anunciam-nos vagas de frio e de calor, alertas vermelhos e laranjas, antecipam catástrofes e, quais profetas no momento de anunciarem a redenção, dizem-nos quantos dias teremos de esperar ou expiar até que chegue o “bom tempo”.
Não interessa que nesse país mediaticamente invisível que é o da agricultura e da pecuária se viva no temor de uma grave seca: no conceito mediático de “bom tempo” não entra chuva.
Dada a ausência de uma informação digna desse nome nesta matéria o “bom tempo” deixou paulatinamente de ser o tempo que muitos desejariam que vigorasse 365 dias por ano (mesmo que tal implicasse tornarmo-nos num deserto) para se transformar no tempo que deve fazer: qualquer desvio desse imaginário sol e temperatura amena transformou-se numa anormalidade. Em matéria de meteorologia perdemos informação e senso comum. Ganhámos ignorância e alarmismo. Ou seja regredimos.