Na semana em que Mário Nogueira tomou novamente os filhos dos contribuintes como reféns, para exigir desta vez um resgate de 650 milhões de euros, Mário Centeno lembrou que a boa conjuntura internacional pode ter um reverso: taxas de juros mais elevadas, e logo um endividamento mais caro. Eis uma ocasião para falar da nossa história de sempre: as boas notícias inspiram exigências, os governos dão, e depois as notícias deixam de ser boas, e há que tirar o que se deu.
Desde a II Guerra Mundial, os portugueses conseguiram regularmente prosperar no comércio com a Europa ocidental, um dos maiores mercados do mundo. Mas também regularmente, essa prosperidade foi usada pelos governos, da esquerda e da direita, para prometer e garantir rendas e estatutos para além do que era sustentável. Foi a esta política que António Costa chamou, esta semana, “chapa ganha, chapa distribuída”. O que não disse foi que muitas chapas distribuídas não são de facto chapas ganhas, mas chapas falsas.
A política das “chapas” não resulta apenas das expectativas e da euforia dos cidadãos, mas do cinismo de regimes e de governos decididos a ganhar popularidade hoje por meio de compromissos inviáveis amanhã. Por isso, sempre que o mercado externo foi menos favorável, houve crises, ou seja, descobriu-se que as chapas eram falsas. Tivemos então resgates internacionais (em 1978, 1983, 2011), mas também a degradação das “chapas distribuídas”: no tempo do escudo, através da inflação, que corroeu silenciosamente salários e prestações sociais, ou da restrição da protecção estatal aos que já estavam anteriormente protegidos; na época do euro, através dos cortes e das flexibilizações da troika. Em qualquer dos casos, foi “chapa dada, chapa tirada”.
A capacidade do país de aproveitar o mercado europeu diminuiu desde a década de 1980. A partir de 2000, sem as desvalorizações do escudo, Portugal não foi capaz de acompanhar a globalização. Limitou-se a explorar os juros do Euro para se endividar. Entre 2011 e 2014, corrigiram-se desequilíbrios e foi possível tirar partido da conjuntura internacional. A economia voltou a crescer e o desemprego diminuiu. Como seria fatal, desembocámos logo numa nova época de distribuição de chapas. Qual é o problema desta distribuição? Tem favorecido especialmente o funcionalismo sindicalizado, e, como de costume, não é claro que seja sustentável.
Que acontecerá se a conjuntura mudar? Como admitiu Centeno, nem será preciso uma nova crise. Basta que a prosperidade justifique o fim do dilúvio de dinheiro barato com que os bancos centrais tentaram diluir a recessão de 2008. As nossas dívidas apertar-nos-ão logo os pés, como sapatos que encolhessem subitamente. Não podíamos ter prova mais extrema da nossa vulnerabilidade: sofreremos se a conjuntura piorar, sofreremos também se continuar a melhorar.
Com uma sociedade envelhecida, uma carga fiscal que impede a acumulação de património, uma taxa de poupança quase nula, uma produtividade estagnada, e um governo que, para se manter no poder, agrava constrangimentos e multiplica compromissos, vai a história, desta vez, ser diferente? Isto é, vão as chapas valer o que agora dizem que valem? Os oligarcas dizem que sim. O “diabo não vem”, clamam com gáudio. Acreditam em Mario Draghi e na sua tipografia de dinheiro. Acreditam também em António Costa e na sua fábrica de equívocos: como agora, no caso de Mário Nogueira, em que o governo “cedeu”, mas para pagar daqui a dois anos, numa próxima legislatura … Nos meios financeiros internacionais, entretanto, correm rumores ansiosos sobre o estouro da bolha bolsista gerada pelos juros baixos. Nuno Amado, o presidente do BCP, disse há dias: “espero que não haja uma nova crise…” Resta-nos esperar o mesmo.