Não, o problema não é a justiça. É absurdo dizer que o Ministério Público derrubou o governo. O primeiro-ministro demitiu-se porque, ao contrário das suas carpideiras, percebeu que não podia fazer outra coisa quando o seu chefe de gabinete e o amigo que ele fez protagonista de grandes negócios de Estado tinham acabado de ser presos. Não foi um comunicado que levou António Costa a demitir-se. Não foi o risco de ser arguido. Foi todo o processo. Foram as buscas sem precedentes na residência oficial, foram as suspeitas sobre pessoas da sua maior confiança. E talvez, provavelmente, algum cálculo sobre o estado do país. A justiça tem todos os defeitos de que alguns dos seus próprios titulares se queixam há anos. Mas é a justiça que há, e que deve investigar indícios de crime, e actuar em conformidade, sem outras considerações a não ser aquelas que a lei prevê. Ou acham que os governantes devem estar acima da lei?

Não, o problema não era só José Sócrates. Sócrates foi o produto de uma cultura e de uma maneira de fazer política. Foi essa cultura e essa maneira que continuaram depois dele. Não foram só as mesmas pessoas. Foi a opção de governar através da captura do Estado e do controle pelo Estado de tudo o que é relevante no país. O resultado é um poder que tende fatalmente a subverter o Estado de direito. Foi esse “mecanismo” que gerou os “influentes” deste processo, tal como tinha gerado Sócrates. A corrupção não é meia dúzia de indivíduos menos honestos: é o sistema, como nos Estados falhados do Terceiro Mundo. Ora, a actual direcção socialista – o mesmo grupo de pessoas desde 1995 – não sabe governar de outra maneira. O que quer dizer que este PS continuará a produzir casos e escândalos como um limoeiro dá limões.

Não, o problema não são as eleições. É notável como, perante tudo isto, se tenha conseguido fazer um espantalho com as eleições antecipadas. Uns lamentam já esta maioria absoluta, como se tivesse dado estabilidade e bom governo: já se esqueceram do Verão passado? Outros alertam para o risco de o país não estar “preparado”. E como acham que se deve “preparar”? Mantendo um governo desacreditado? Arranjando outro governo saído do mesmo grupo político? Era isso que iria “educar o povo”? Se querem escrutínio, debate e reflexão, não há melhor maneira de os suscitar do que através de eleições. Quase cinquenta anos depois do 25 de Abril, continua a ser possível meter medo com a democracia, o debate livre, e as escolhas do povo. Isso também explica o ascendente que esta direcção do PS obteve sobre a sociedade portuguesa.

E finalmente, não, o problema não é a oposição. O problema é o PS, e o “mecanismo” que o PS usa para exercer poder. Por isso e neste momento, qualquer outra situação política é preferível, por mais frágil e limitada, desde que não envolva esta direcção socialista. Se estivermos à espera de que as alternativas sejam todas protagonizadas por génios com o Nobel da Física ou por santos reconhecidos pela Igreja, ou ainda por rapaziada fraternalmente unida à maneira do “band of brothers”, então façamos já manifestações para a justiça libertar os presos, porque nunca haverá ninguém para os substituir no governo. Não, o país precisa de escolher, com tudo o que já sabe, se quer ou não continuar a ser pastoreado por esta rede de “amigos”. E para essa escolha, não faz sentido pensar que estará mais preparado daqui a dois anos do que agora. Convém arejar a casa. Precisamos de respirar – pelo menos, aqueles para quem ainda importam a liberdade, a democracia e uma vida pública minimamente limpa e decente. Espero que ainda sejam muitos. Se não forem, também é importante ficarmos a saber isso o mais rapidamente possível.

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