O populismo contemporâneo é um problema relativamente recente na Europa. Como tenho vindo a defender, cada caso é um caso – uma vez que as reivindicações dos partidos extremistas de cada país estão relacionadas com as condições internas de cada estado – mas há três elementos comuns a todos. Estranhamente, têm sido pouco referidos na literatura da especialidade e o meu palpite é que isso se deve às características próprias do projeto europeu, que ao reconhecê-los terá que admitir fracassos que envergonhariam os Pais Fundadores.

O primeiro elemento, implica voltarmos a um velhinho conceito que o liberalismo tentou enterrar: o de classe social. Acreditámos que uma das vantagens do projeto europeu era uma renovada ênfase na mobilidade social. Durante anos, todos apontámos exemplos de meritocracia vinda das classes mais baixas que, por serem em número suficiente, nos apaziguava quanto ao futuro. Contudo, o crescimento económico insuficiente, aliado a um estado social mal gerido em muitos países da comunidade, levaram à criação de uma classe média com pés de barro, que empobreceu quando a crise se instalou. Pode não ser um empobrecimento demasiado visível. Há formas de o disfarçar. Mas ele está lá.

De repente, voltou a falar-se de “classes rurais”, “classes periféricas” e “classes trabalhadoras” desta vez como potenciais eleitores das forças políticas menos convencionais. Mas fez-se de maneira errada. Em vez de se valorizar as suas reivindicações, muitas vezes justas, foram apontadas como incapazes de distinguir o que é política séria, o que são os charlatães que ameaçam mudar, fundamentalmente e para pior, a nossa vida política e social.

O segundo elemento – relacionado com o primeiro – é um renovado descrédito na democracia como tipo de regime. É certo que muitos de nós continuamos a defender as ideias liberais e as instituições eleitas (e bem) com unhas e dentes. Mas a verdade é que este descrédito já se vem fazendo sentir há alguns anos a esta parte. Começou com o facto de, nas democracias desenvolvidas, os cidadãos deixaram de se auto dispor a ir às urnas. Para quê? A alternância entre dois grandes partidos do sistema tornou-se uma quase certeza e, entre uns e outros, tão parecidos, para quê levantarmo-nos no sofá?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Depois da crise de 2018, a população dos países europeus passou a ser um pouco mais assídua no exercício do direito ao voto, mas para privilegiar a escolha nos partidos de protesto. Afinal, pensam os cidadãos, os partidos tradicionais deixaram os seus eleitores numa situação financeira delicada que só pode ser resolvida por instituições que os confrontem. Se esses partidos não tiverem como ideia fundamental a liberdade e todas as suas derivadas, tanto faz. Desde que ponham ordem na casa, quer na casa política, cada vez mais percecionada como corrupta, quer na casa de cada um, cada vez a sentir-se mais traído pelo esquecimento das classes que os governam.

Estes dois pontos traem a teoria da modernização na sua versão liberal, vista como essencial para o desenvolvimento e manutenção de uma sociedade democrática saudável. Explicou-nos Lipset, no final dos anos 1950, que era necessário manter uma classe média alargada. Esta burguesia tinha a dupla função de fazer crescer a economia quer pela via do investimento, quer pela via do consumo, e de forçar (em casos de não existência) ou exigir a manutenção (em caso de existência) do estado de direito, o único capaz de satisfazer as suas exigências de conforto, emprego, liberdade e intervenção cívica.

Ora desde a crise de 2008, o que temos assistido na Europa (e até certo ponto nos Estados Unidos) é à diminuição da classe média. Se se pode defender que os interesses burgueses são egoístas, também se pode argumentar que a satisfação desses interesses contribuía para o bem comum. Não era preciso falar de classes sociais porque a classe média era suficientemente abrangente e sentia-se suficientemente segura para não haver necessidade disso. As lacunas que sempre existiram eram abafadas pela maioria (silenciosa por estar satisfeita) e pelo politicamente correto.

O terceiro elemento está relacionado com a dificuldade de contestar um regime sozinho. Está demonstrado que os movimentos políticos e ideológicos têm que ter caixa de ressonância transacional (e condições sistémicas) para se espalharem por uma região – ora espreitem o belíssimo estudo de John M. Owen, The Clash of Ideas in World Politics.

Na Europa, uma rede de insatisfação generalizada encontrou-se com modelos em que a autoridade e a estabilidade são cada vez mais valorizadas em detrimento da liberdade. Assim, o combate político trava-se cada vez mais entre uma direita moderada e democrática e uma direita nacionalista e iliberal (os partidos de esquerda estão em queda vertiginosa), que muitas vezes têm da Rússia de Vladimir Putin como exemplo “do baluarte da estabilidade do conservadorismo social” – a expressão é do historiador britânico Michael Burleight. Não quer dizer que queiram replicar o modelo russo. Quer dizer que um certo tipo de liderança musculada volta a ter muito mais adeptos do que gostaríamos de reconhecer.

Todas estas três forças, em conjunto, são poderosas, mas não inevitáveis. O caminho pode ser longo, mas não se resolve com meras denûncias de populismo e de autoritarismo. Já não é isso que incomoda as pessoas. Resolve-se com verdadeiras reformas que permitam alargar a classe média novamente; com a moralização da política, que permita os políticos tradicionais denunciarem as agendas escondidas dos populistas; e com políticas de criação de emprego que esbatam as novas desigualdades sociais. Sem isso, a propaganda ganha. Porque é muito mais fácil acreditar no que se quer ouvir do que num compromisso de mudança.