Há dias, no Observador, João Marques Almeida comparou o dr. Costa ao sr. Trump. Dada a dimensão da ofensa, muito boa gente esperaria que o presidente dos EUA publicasse quinze “tweets” irados e ordenasse um ou dois bombardeamentos em cima do colunista. Não aconteceu nada. Quem curiosamente se ofendeu, também através do Twitter, foi um deputado do PS chamado Qualquer Coisa Simões, que não só achou o texto “vergonhoso” como sugeriu a aplicação de “1 par de bofetadas” (sic) no respectivo autor. Instado, mais tarde, a comentar a sugestão, o sr. Simões explicou que apenas pretende ressuscitar o, cito, “bom registo do debate público no final do século XIX, início do século XX, que infelizmente já não existe”. E acrescentou: “Se Almeida soubesse esgrimir, eu desafiava-o para um duelo. Como ele não sabe o que é um florete e muito menos um sabre, só me restou um figurativo e literário par de bofetadas.”

Os socialistas são uma bênção. Além de recorrentemente assegurarem a paz social e o progresso económico, ou vice-versa, ainda querem devolver-nos à época feliz do “final do século XIX, início do século XX”, quando meio mundo, literário até à medula, tratava dos seus assuntos em fascinantes colóquios de esgrima e paulada sortida. Na falta de talento dos contemporâneos para o manuseamento do florete e da moca de Rio Maior, tendência que se lamenta, restam as bofetadas, que já um ex-ministro do actual governo prometera a dois críticos. Com jeito, porém, o zelo tradicionalista do PS irá a tempo de recuperar os duelos clássicos, isto para não falar da sífilis, da fome negra e de outras conquistas do passado.

Por enquanto, importa limitarmo-nos aos métodos disponíveis de reparação da honra. Mas não me parece correcto limitarmo-nos às tais bofetadas. Portugal vive um período fulgurante: o salário mínimo aumenta, o desemprego diminui, a desigualdade salarial encolhe, os salários encolhem, os sindicatos colaboram, os patrões são postos em sentido, a dívida avança rumo a recordes e reestruturações, o imperialismo estrangeiro contempla abismado o caso de estudo em que nos transformámos, etc. Se em tudo seguimos o glorioso trilho da revolução bolivariana, não há motivos para não imitarmos a Venezuela no que respeita à punição de elementos subversivos ao regime. Por isso, em prol do “bom registo do debate público”, proponho uma breve lista de infracções e castigos:

  1. Referir o dr. Costa sem adicionar os epítetos “O Grande”, “Príncipe da Política”, “Diplomata” ou “Hábil Negociador”: puxão de orelhas e advertência verbal.
  2. Insinuar que, embora glorioso, o dr. Costa ocasionalmente comete erros: invasão da casa do perpetrador, com direito a ameaças ao próprio e à família.
  3. Afirmar que, embora os serviçais o proclamem glorioso, o dr. Costa é um erro em si mesmo: julgamento “popular” e prolongada pena de prisão.
  4. Aludir ao domínio da língua portuguesa apresentado pelo dr. Costa: agravamento da pena de prisão e sessões de bordoada às terça e quintas.
  5. Mencionar que o dr. Costa está gordo e raramente apara os pêlos das orelhas: quatro penas perpétuas, bordoada, tortura do sono, aulas diárias de reeducação cívica e linchamento público, por ordem a apurar.
  6. Comparar, desde que favoravelmente, o dr. Costa a Buda ou Gandhi: um lugar de opinador independente na TSF e uma comenda do prof. Marcelo.

A propósito do prof. Marcelo, este confessou-se impedido pelo bom senso a comentar a situação na Venezuela. Tem inteira razão: para quê louvar o imenso sucesso alheio se o nosso para lá caminha?

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Nota de rodapé

Ontem, o jornal “i” publicou uma entrevista comigo e “chamou” para a capa a frase: “Não consigo discordar da política migratória da sra. Le Pen”. Na entrevista propriamente dita, lembrei que a vitória da senhora constituiria uma calamidade para a Europa e sobretudo para Portugal. Não lembrei, porque não era preciso, a aversão da senhora ao euro e à Nato, o proteccionismo económico, o nacionalismo aberrante, a demagogia exacerbada e a transformação, nada inédita, da política numa guerra entre “nós” e “eles”, em que “eles” são todos os que, mal por mal, ainda acreditam numa ou duas virtudes da democracia.

Escrevo isto não para me desculpar, mas para notar que, nem de propósito, calhei de concordar com a sra. Le Pen no único ponto que a extrema-esquerda, a indígena e a forasteira, não partilha: o receio face aos avanços do islão. Em matéria de discriminação, diga-se, a extrema-esquerda prefere exercê-la contra Israel e os judeus, que obviamente são a grande ameaça ao modo de vida ocidental. No resto, conforme José Manuel Fernandes já aqui recordou, as propostas da candidata às “presidenciais” francesas não se distinguem das propostas do sr. Mélenchon, o candidato entretanto derrotado (e apoiado, por exemplo, pelo BE e pelo Podemos). Ou das propostas habituais do Bloco e do PCP.

As semelhanças são tantas que os esforços para negá-las são engraçados ou inexistentes. Uma sondagem feita pelo França Insubmissa (o nome nem disfarça) do sr. Mélenchon aos seus eleitores, acerca da segunda volta, incluía três possibilidades: votos brancos e nulos; abstenção; Macron. Não incluía a sra. Le Pen, a escolha plausível da maioria. Por cá, alminhas várias de BE e PCP exibiram, trémulos, a convicção de que seria irrelevante optar por Macron ou pela sra. Le Pen.

Não seria. Macron, decerto uma figura menor, é uma promessa – débil – de “normalidade”. A sra. Le Pen é um perigo. Um perigo em quase tudo semelhante a BE e PCP, que por cá influenciam o poder sob a simpatia dos exactos “media” que andam aflitíssimos com a hipótese Frente Nacional. Como se consegue tal acrobacia? É fácil: basta à extrema-esquerda apelidar a sra. Le Pen de “fascista” e assim evitar que, por uma vez, a palavra seja aplicada com precisão: fascista é, também, a extrema-esquerda. Sobram, claro, as diferenças visões de ambos perante o islão “imoderado”. Mas o islão “imoderado” é o quê? Escusam de responder.