No longínquo ano de 1986, um anónimo de génio ao qual quero prestar aqui o meu mais vigoroso tributo deixou uma marca indelével num dos quartos de banho da biblioteca da Universidade de Cambridge. No meio das fatais inscrições pornográficas que ocupavam as paredes, podia-se ler: “Não percebo porque é que tanta gente perde tempo com isto quando podia estar a ler Schopenhauer na sala Oeste C” (a sala dos livros de filosofia).

Este precioso ensinamento moral vem-me muitas vezes ao espírito, e em contextos que nada têm a ver com o objecto ao qual aquele grande homem directamente se referia. Quando, por exemplo, procuramos fazer um pouco de sentido deste mundo fragmentado e pouca coisa parece poder ajudar-nos na matéria, a tentação de fugir para a sala Oeste C, e dela não mais sair, é grande. Mas acontece que, ao contrário dos gatafunhos com que multidões de seres humanos cobrem, em momentos de intimidade, as paredes que estão à mão, há muita coisa que nos pode bem lixar a vida e que convém tentar compreender. Sobretudo se, sob muitos aspectos, possui o carácter de novidade e é surpreendente.

A selvajaria do Estado Islâmico ou do Boko Haram, ou de organizações congéneres, não surpreende já muito. E seria bom, de resto, que se parasse de dizer ritualmente “Isto não tem nada a ver com o Islão”, que, e peço desculpa pela ligeireza da comparação, lembra irresistivelmente o “Não é aquilo que estás a pensar” pronunciado nas circunstâncias da praxe. O carácter criminoso do regime de Putin também não é propriamente uma surpresa, por mais que as consequências na Ucrânia, e provavelmente a curto prazo nos Estados Bálticos, sejam dramáticas e decisivas para o nosso futuro. O nosso próprio PS caseiro não é uma surpresa, nem a trapalhada do BES. Costa, um homem normal (discurso aos chineses) e cheio de génio (saudando o Syriza) espanta pouco, tirando os espantosos espantados que se espantaram com ele nas “primárias”. E quem não gostaria de ser como ele, normal e cheio de génio? Ricardo Salgado e Zeinal Bava parecem, aos olhos de quem assiste à comissão de inquérito parlamentar do caso BES, crateras siberianas convictas de planarem acima das obrigações do comum dos mortais. Há muitos filmes americanos que conhecemos e onde eles podiam entrar. De Sócrates não vale a pena falar.

A Grécia, pelo contrário, é, à sua maneira, uma surpresa, e a Espanha arrisca-se também a sê-lo. Por isso, vale a pena perder tempo suplementar a procurar decifrar na parede o que se passa nas cabeças de lá, nomeadamente na de Tsipras, uma espécie de general Tapioca à paisana denunciando cobardes conspiradores escondidos em palácios poeirentos.

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Longe de mim pensar que as ideias, e sobretudo as teorias da sociedade, têm um papel dominante na acção política efectiva. Tanto a montante como a jusante delas há demasiados factores decisivos que impedem que seja assim. Mas é sem dúvida absurdo não lhes conceder importância alguma. Fui por isso vasculhar na net se havia algo sobre a actual situação grega e espanhola escrito pela pena de um dos mais célebres teóricos da esquerda radical, o filósofo, e antigo teórico das Brigadas Vermelhas italianas, Toni Negri. Como era fatal, fui bem sucedido. Sem grande esforço, descobri dois artigos, ambos redigidos em parceria com um militante do Podemos, Raúl Sánchez Cedillo. O primeiro, no jornal espanhol Publico (23 de Fevereiro) intitula-se “Por uma democracia selvagem e constituinte”; o segundo, no Guardian (27 de Fevereiro), chama-se “A nova esquerda na Europa necessita de ser radical – e europeia”.

O artigo em castelhano, onde há várias referências implícitas a Espinosa, de que Negri é especialista, está escrito numa linguagem positivamente intragável. O movimento Podemos, por exemplo, deve ultrapassar a sua “dimensão horizontal” (não, não é uma referência à sesta espanhola) e passar à “verticalidade”, isto é, deve passar “da agitação e da resistência de movimento ao governo”. Omito as inúmeras referências eruditas que cabem em três páginas, para ficar apenas pela ideia-chave. Trata-se de, transitando da reflexão para a acção, “derrotar” e “desarticular” o “adversário” (isto é, os restantes partidos políticos) e levá-lo “a perder todo o peso político e constitucional”.

O artigo do Guardian oferece, a propósito do Syriza e do Podemos, uma versão convenientemente mais amena, tanto na mensagem explícita quanto no estilo. O bom senso anglo-saxónico não entenderia bem, verosimilmente, ou entenderia de forma inconveniente, a dialéctica da “agitação horizontal” e a “democracia selvagem”. O que propõem então Negri e Cedillo? Uma “intervenção política dentro e contra a União Europeia”. “Dentro e contra”, sublinho. Não é uma boa descrição do que diz e faz o camarada Varoufakis? O “espírito de resistência”, “anti-fascista”, deve-se manifestar no “campo de batalha” de “toda a Europa”. E deve permitir recuperar Frankfurt para a democracia e conduzir a Europa como um todo a sair da NATO.

Os dois artigos, como é bom de ver, apelam a uma revolução europeia. Mas, aparte uma ou outra brincadeira retórica, não se adivinha muito bem a subtância teórica que lhes subjaz. Para a buscarmos, não é inútil voltarmos atrás no tempo, ao ano 2000, quando Toni Negri publicou, em parceria com Michael Hardt, um livro com grande difusão intitulado Império. Não é verdadeiramente um prazer, mas uma obrigação profissional é uma obrigação profissional.

Em Império, Negri e Hardt recorrem (como também acontece no artigo do Publico) ao conceito de “multitude” (ignoro aqui a referência muito discutível ao pensamento político de Espinosa). A “multitude”, através da sua experiência prática, forjará uma organização susceptível de combater o “Império”. Tal organização beneficiará da constituição de uma “subjectividade anti-imperialista” que é uma “vontade de ser-contra”, uma “barbárie positiva”. A nova subjectividade e a barbárie positiva trazem consigo uma modificação dos próprios corpos: “Requer-se um corpo que seja totalmente incapaz de se adaptar à vida de família, à disciplina da fábrica, às regras de uma vida sexual tradicional, e assim por diante. (…) Os caminhos infinitos dos bárbaros devem formar um novo modo de vida.”

Podia continuar com citações assim por páginas e por páginas. O substrato teórico, como coisa distinta da prolixidade retórica, seria sempre vago. Mas é o que se tem como assento para os artigos em questão. Deixo, por isso, duas notas apenas. Primeira nota. Por muito difícil que seja de acreditar, Negri é um autor influente. (Como dizia o outro, há obras-primas em todos os géneros, incluindo a mais grosseira mistificação.) E não só em certos círculos universitários, mas em movimentos contestatários como o Podemos e o Siryza. Como disse antes, não pretendo de modo algum que a “teoria” seja um momento nuclear desses movimentos: mas seria profundamente errado pensar que ela não ocupa neles nenhum lugar. Ocupa, e não é um lugar completamente despiciendo. Segunda nota. Em virtude disso mesmo, conviria que as pessoas que ou se extasiam ou não ocultam alguma afectividade pelo Podemos ou pelo Syriza começassem a meditar nos processos através dos quais tencionam integrar em si a “barbárie positiva” e, em boa nova ortodoxia, seguindo a “vontade de ser-contra”, imaginam modificar o seu corpo em solidariedade com a “multitude”. Por mim, fico à espera de grandes revelações na televisão e nos jornais por parte dos novos bárbaros positivos, mesmo dos que habitualmente usam colete.

Mas algo me diz que tudo isto, disfarçado de esperança e outras coisas lindas assim, não passa de uma nova roupagem do nihilismo, na qual uma boa parte da esquerda investiu os seus tostões mentais (e, segundo consta, uns dinheirinhos da Venezuela de Maduro). E que esse nihlismo, junto a um leninismo de pacotilha, só traz consigo destruição e miséria. A “barbárie positiva” é só barbárie (negativa) e a “multitude” tornar-se-á numa multidão infeliz que, à pala destes delírios, acabará por se sujeitar, para sobreviver, a disciplinas de fábrica que não imaginou. Os teóricos, eles, não sentirão qualquer responsabilidade na coisa, e os novos émulos do general Tapioca culparão os conspiradores.

E agora, se me dão licença, volto à sala Oeste C.