Domingo.

Quase se ouve um suspiro de alívio universal. Não começou a desintegração, a Europa continuará a coxear mas hoje não caiu no chão, e apesar do tecido político francês estar num farrapo, o resultado eleitoral que podia ser indecente, não o foi. Estranho porém a tranquilidade optimista que de forma geral registo nos écrans portugueses e constato nas televisões europeias. Nem o homem é a pérola escondida que surgiu de dentro da concha, nem as circunstâncias (as suas muito particulares circunstâncias políticas) aconselham óculos cor-de-rosa sobre o futuro, a curto e médio prazo, em França.

Já se sabe que gente de direita (como eu, por exemplo) não pratica o optimismo com leveza — não dá jeito, tolda a visão das coisas — mas qualquer ser normalmente constituído não pode esperar o melhor das próximas legislativas em França e serão exclusivamente elas que formatarão a futura França política e desenharão o novo mapa partidário. Emmanuel Macron, sozinho em casa, nada fará, a arquitectura da V República não deixa. O desacerto entre a sua solidão política e a complexidade do cenário onde vai ter que actuar não convida ao triunfo, mesmo que seja compreensível confundi-lo com o puro alívio face aos resultados de hoje. E mesmo que este momento seja (evidentemente) de glória para um jovem de 39 anos de quem poucos haviam ouvido falar há meia dúzia de anos, que mobilizou meio país sem se comprometer com quase nada, sinal dos tempos.

(Sim, excluo que a segunda vencedora desta noite, Marine Le Pen, entre — desta vez – no Eliseu. Talvez por isso aquelas habituais contabilidades, típicas de uma segunda volta, sobre para quem irão os votos de quem, não me interpelem tanto.Logo se verá. A vitória de Marine Le Pen foi outra, já lá irei)).

Segunda-feira.

As bolsas subiram, os chefes europeus rejubilaram, bebeu-se muito champagne. E no entanto… há o tal desacerto, Macron está só, rodeado de multidões felizes. Chamam-lhe “outsider”, não é. É verdade que não foi maire” nem nunca chefiou a secção de nenhum partido, mas não será isso que lhe permitirá usar os (sempre) almejados galões de “alguém fora do sistema”, tão aliás do exuberante agrado do próprio Macron. Está no centro do sistema, foi “enarca”, estudou Sciences Po, é um produto das elites e apesar do entre-parentesis na Banca, o que tem feito é político e “política”. O próximo Presidente destoa e desacerta porque os presidentes franceses, na V República, aterram munidos de forte amparo partidário que eles chefiam e de onde recebem legitimidade e força. É o chão deles. Macron não tem chão próprio debaixo dos pés e vai ter que ter. Como? Eis o ponto. Uma coisa é o apoio dos ex-candidatos Fillon e Benoit Hamon, que só os comprometem a eles, outra, os partidos a que pertencem. Veja-se o sibilino “silêncio” de ontem de Nicolas Sarkozy, líder dos Les Republicans e escute-se o tão audível ressentimento de Alain Juppé. E observem-se os estilhaços do partido socialista, apesar de Hamon. E apesar de Valls, do defunto Hollande, dos barões e das baronesas. Desacertos por entre cinzas.

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E depois, mobilizada pelos talvez 40 por cento de votos que a sua candidata deverá obter a 7 Maio, há a Frente Nacional. De quem vai ser preciso fazer caso politicamente no hemiciclo da Assembleia, porque o partido existe, porque cresceu, porque se sente forte e está unido. E com quem vai ser preciso discutir, negociar e interagir.

E se ainda ignoramos se Emmanuel Macron ficará assente em dois pés partidários – uma novidade complicada – ou se “inventará” uma maioria dele, há algo que o próprio mundo sabe : a França é o país mais instalado que se conhece. Mudanças sim, desde que não a incomodem muito.E se incomodarem, faz o que sempre fez até hoje: avança para a rua com a determinação das divisões de Napoleão. A rua sempre fez recuar qualquer reforma ou deixou-as desfiguradas ou mesmo irreconhecíveis, enquanto de caminho, a mesmíssima rua obtinha como bónus, a pele de ministros e primeiros-ministros a quem enxotava para fora dos governos. Reformar em França é proibição ou pecado e eis o mais temível dos desacertos: entre a vital necessidade de reformar e a realidade da sua impossibilidade. Quase se chega a ter pena de Macron. O que ele obviamente dispensará e nem sequer merece. Mesmo que as coisas sejam o que são( muito complicadas) e mesmo que se olhe para ele como já tendo mudado alguma coisa só pelo simples facto de existir.

Terça-feira.

No remanso do Oeste, o 25 de Abril chega-me por entre a brisa maritima e o doce silêncio da casa. Não que aqui se deixe passar a lembrança pois segundo me informa o Jornal das Caldas, “nas Gaieiras e em A-dos-Negros há 25 de Abril”. Não pude aperceber-me se o festejo era condigno ou se o cansaço de 43 anos em cima das pernas da efeméride, terá abrandado os ânimos e reduzido a participação mas havia “lanche”. A passada de Marcelo, com ou sem lanche, é que certamente não abrandou.

Falei em desacertos, lembrei-me dele. À hora a que escrevo deve desdobrar-se nas suas habituais profissões de fé pois teme sair do único modelo que o securiza: dizer bem. Celebrará o dia por obrigação muito mais que por devoção; o país que não o aflige; a geringonça que tanto ama. Celebrará tudo. E a ele próprio, sempre na senda do recorde de presidente “popular”.

Desacerto porquê?, perguntarão os devotos que encontro nos jantares burgueses ou os portugueses das selfies. Perguntarão desconfiados, claro, porque acham que a minha reserva “é pessoal”. Fazem mal. Ignorando que Marcelo Rebelo de Sousa foi das pessoas com quem melhor trabalhei e com quem certamente melhor ri e sabe-se como o riso — o de boa colheita — tece sólidas cumplicidades entre as pessoas. Sucede que a radiografia é demasiado nítida para ser mal lida: desacerto entre a exigência da função e a inconsequente leveza da actuação: um estonteamento de “idas” e “saídas” onde se equivalem a trivialidade e a tragédia, numa total falta de critério; a obsessão da “proximidade” e do “contacto”,tratados como valores em si mesmos. O norte e o mote permanecem imutáveis: sair. Quantas mais aparições melhor. Ao pé disto Nossa Senhora foi mais cauta. (Por este andar mais valia alugar o Palácio de Belém onde o Presidente nunca está, sempre dava algum dinheiro à geringonça que tanto precisa dele embora nós saibamos que Centeno vela.)

Sejamos sérios: actuar assim é exibir perante o país que nunca por nunca ser, o seu Presidente tem em mãos um assunto, uma reflexão, uma ponderação, cuja complexidade o impeça de sair porta fora, ao primeiro impulso. Que a sua disponibilidade para aprofundar o estudo das questões é preguiçosa, que preferirá sempre o movimento ao assento. A leveza à substância.

E partir daquele imorredoiro desabafo do “ia a passar por aqui”, dito presidencialmente há dias em Tires, após a trágica queda da avioneta, como (assombrosa) justificação de lá estar dez minutos depois do acidente, legitimam-me em absoluto: não posso ser acusada de nada pelo uso da palavra desacerto.

Uma pena. Com os dias contados, mas uma pena à mesma.